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Não, a Itália não está perto de se tornar uma autocracia; leia a análise

Amarrada à União Europeia e restringida pelo sistema político da Itália, Meloni não terá muito espaço de manobra e não poderia transformar Roma em Budapeste, mesmo que quisesse

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Por Mattia Ferreira
Atualização:

ROMA — Aconteceu na Itália, de novo. Quase 100 anos desde a Marcha sobre Roma, a Itália votou no domingo em uma coalizão de direita liderada por um partido descendente direto do regime fascista de Benito Mussolini.

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Isto é, para dizer o mínimo, preocupante. No entanto, a preocupação mais difundida não é que o partido Fratelli d’Italia (Irmãos da Itália), de Giorgia Meloni, reinstitua o fascismo na Itália – seja lá o que isso signifique. É que um governo liderado por ela transformará a Itália em uma “autocracia eleitoral”, nos moldes da Hungria de Viktor Orban.

Durante a campanha, o Partido Democratico, de centro-esquerda - o principal oponente da Irmãos da Itália - invocou obsessivamente a Hungria como o destino da Itália sob o governo de Meloni. A disputa, eles repetiram, era entre democracia e autoritarismo.

Giorgia Meloni posa para fotos e diante de apoiadores após projeções apontarem vitória de sua coalizão de direita. Foto: Andreas Solaro / AFP

No final, o angustiado “alarme para a democracia” dos democratas não conseguiu persuadir os eleitores: em uma avaliação inicial, o Partido Democratico ganhou 19% contra 26% dos Irmãos da Itália. Há muitas razões para isso. Uma delas certamente é que a imagem que eles desenharam de Giorgia Meloni, como uma pretensa tirana atacando a democracia italiana e inaugurando uma era de iliberalismo, não foi convincente.

Apesar de todo o radicalismo retórico e extremismo histórico de seu partido, ele não estará operando nas circunstâncias de sua escolha. Amarrada à União Europeia e restringida pelo sistema político da Itália, Meloni não terá muito espaço de manobra. Ela não poderia transformar Roma em Budapeste, mesmo que quisesse.

O principal baluarte contra a autocracia na Itália pode ser resumido em uma palavra: Europa. Nossa frágil economia – que deve crescer, no melhor cenário esboçado pelo Fundo Monetário Internacional, apenas 0,7% em 2023 – depende fortemente das instituições europeias.

Além da habitual rede de laços econômicos, o país é o maior beneficiário de um fundo de recuperação liderado pela Comissão Europeia que deve distribuir nos próximos quatro anos mais de 200 bilhões de euros em doações e empréstimos. Fundamentalmente, esta ajuda para salvar a economia, sem a qual o país pode entrar em recessão, está condicionada ao respeito das normas democráticas. Qualquer passo no caminho de Orban colocaria em perigo toda a economia da Itália, certamente uma impossibilidade para o novo governo.

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Jogar de acordo com as regras europeias não seria uma concessão tão grande quanto parece. Afinal, o Irmãos da Itália, ao longo dos anos, temperou progressivamente seus instintos eurocéticos. Em 2014, Meloni anunciou que “chegou a hora de dizer à Europa que a Itália deve deixar a zona do euro”. O partido, ela prometeu, buscaria “uma retirada unilateral” da união monetária e, em 2018, ela patrocinou um projeto de lei para remover as referências ao bloco da Constituição italiana. No entanto, à medida que a perspectiva de poder se aproximava, esses objetivos saíram da agenda do partido. “Não acho que a Itália precise sair da zona do euro e acredito que o euro vai continuar”, admitiu Meloni no ano passado.

Também na política externa, Meloni está alinhada com a visão dominante no continente. Anteriormente amigável com o presidente Vladimir Putin da Rússia - ela pediu ao governo italiano para retirar seu apoio às sanções após a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 e parabenizou Putin por sua reeleição fraudulenta em 2018. Mas desde a invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia, ela reinventou-se como portadora da tocha do atlantismo e uma firme defensora da Otan.

Ela agora é uma grande defensora de um teto de preço do gás em toda a Europa, a arma econômica mais potente do continente contra Putin (e uma medida, aliás, até agora contestada pela Hungria). Sejam oportunistas ou sinceros, esses movimentos sinalizam o quanto Meloni está pronta para ocupar uma posição convencional e favorável à Europa, apaziguando parceiros internacionais e investidores.

Depois, há o próprio país. Para começar, a coalizão de direita – que também inclui o partido Liga e o Forza Itália – ficou aquém da maioria de dois terços no Parlamento que lhe permitiria modificar a Constituição sem recorrer ao voto popular. O sonho de Meloni de transformar a democracia parlamentar da Itália em um sistema presidencialista, que os críticos viram como o primeiro passo para uma perigosa extensão do poder executivo, já está descartado.

Matteo Salvini, Silvio Berlusconi e Giorgia Meloni no último comício da coalizão de direita em Roma. Foto: Alessandra Tarantino/ AP - 22/09/2022

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Gerenciar a coalizão do governo rebelde também não será fácil. De um lado, está Matteo Salvini, o líder efervescente da Liga. Ressentido com a ascensão de Meloni - que veio às suas custas - e inflexivelmente pró-Putin, ele pode causar problemas sem fim.

Do outro, Silvio Berlusconi, que já avisou seus sócios que o Forza Italia “vai romper com o governo se for preciso”. Nesse cenário conflituoso, será extremamente difícil para Meloni aprovar quaisquer políticas realmente disruptivas. Se ela o fizer, os apelos já audíveis para reintegrar Mario Draghi, que liderou o governo de unidade nacional que caiu em julho, ficarão mais altos.

O ambiente político notoriamente volátil da Itália também é equilibrado por instituições democráticas projetadas para promover a estabilidade e evitar retrocessos autoritários. O sistema descentralizado é composto por 20 regiões semiautônomas e cerca de 8.000 municípios, muralhas para controlar o poder centralizado.

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O Tribunal Constitucional, cuja legitimidade geral nunca foi questionada, é bastante independente da influência política, e o sistema de justiça passou recentemente por uma reforma abrangente, conduzida pela UE. Qualquer tentativa de Meloni de se arrogar poderes para si mesma seria fortemente contra.

Mas há motivos genuínos para preocupação. Meloni é a primeira líder pós-fascista a vencer uma eleição nacional na Itália após a 2ª Guerra, e seu partido é o herdeiro do Movimento Social Italiano, a reencarnação do Partido Fascista há muito dissolvido e constitucionalmente banido.

O processo de “des-demonização” pelo qual passaram os Irmãos da Itália, inclusive repudiando abertamente a tradição fascista, não anulou as conexões profundamente enraizadas com os círculos neofascistas. Autoridades do partido foram muitas vezes flagradas se misturando e fazendo negócios com os grupos de extrema direita mais famosos.

Além do mais, as simpatias de Meloni, se não sua atual orientação política, estão com os não liberais da Europa. Recentemente, em 15 de setembro, ela liderou seu partido a votar contra uma resolução europeia que censura Orbán, e ela é uma aliada próxima do partido governista Lei e Justiça da Polônia, que está envolvido em uma feroz disputa de Estado de direito com a Comissão Europeia sobre o controle governamental do judiciário. Sua plataforma – militantemente anti-migrante, socialmente reacionária e impregnada de uma cultura de clientelismo e tribalismo – é inconfundivelmente nativista e radical.

Tudo isso, é claro, é problemático. Mas nem todos os problemas levam à autocracia.

*Mattia Ferraresi é jornalista e editora-chefe do jornal italiano Domani.

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