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Modern Love: minha mãe, a estranha

Depois de cortar todo contato com minha mãe, tentei deixar essa questão de lado. Agora estou tentando aguentar firme

Por Caitlin McCormick
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Eu conheci Soph em um aplicativo. Eu a encontrei pela primeira vez em um bar de vinhos com iluminação vermelha no West Village. Ela era exatamente como na foto, mas era mais calorosa, mais radiante. Tímida e charmosa, com uma gargalhada que eu queria roubar para mim, ela me deu um abraço quando me aproximei dela.

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Eu já sabia que ela era australiana. Por mensagem de texto, eu a fiz jurar que explicaria pessoalmente como veio parar aqui. Era o período cinzento entre o Natal e o Ano Novo, a única vez em que Nova York parece um quarto tranquilo e destrancado em uma festa.

Isso combinou com meu estado de espírito. Semanas antes, eu havia passado por um rompimento que me chateou justamente por não ter me chateado. Um coração partido aos 23 anos, pensei, deveria ter parecido uma grande matança medieval. Como ser dilacerada.

No bar de vinhos, Soph me contou como seu pai, ao visitar a cidade vindo de Sydney décadas atrás, conheceu sua mãe, uma mulher nascida e criada em Nova York. Soph estava aqui por alguns meses para passar um tempo com o lado materno da família durante as férias de verão da escola veterinária. Ela esperava se mudar para a cidade no outono, finalmente fazendo bom uso de sua dupla cidadania.

Fiquei imaginando como seria homenagear minha mãe da mesma forma: honrá-la com o tipo de absolvição que costumamos reservar para os mortos. Foto: Brian Rea/The New York Times

“E sua mãe mora em Sydney agora?” Perguntei.

“Bem, ela morava”, disse Soph. “Nós a perdemos alguns anos atrás, na verdade.”

Quase pedi para ela repetir; eu queria dissecar o que ela tinha dito. Eu não podia acreditar que ela havia acertado tão facilmente um tom que eu vinha perseguindo nos últimos três anos.

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Na verdade, fiquei tão atordoada que contei a ela algo que normalmente guardava para o sexto encontro, ou o nono, ou nunca: eu também havia perdido minha mãe. De certa forma. Estávamos afastadas.

Eu era boa em me afastar de minha mãe e era boa em fazer as outras pessoas se sentirem à vontade com nosso afastamento - mas não era boa em falar sobre isso. Minha mãe era alcoólatra, e não disfarçava isso. Ela roubou, mentiu e enganou. Ela só falava comigo com crueldade - até que, depois que meus pais se separaram há vários anos, eu me afastei completamente.

Eu vivi minha vida adulta - com um trabalho que amava, amigos que me amavam, hobbies, interesses e coisas que talvez minha mãe não tivesse - não apesar de nosso afastamento, mas por causa dele. Eu me sentia na obrigação de ser uma espécie de garota-propaganda do distanciamento. Uma personificação viva de “Olha, a vida continua”.

Fiz terapia em grupo e terapia individual. Eu organizei um lendário Friendsgiving, onde os convidados eram obrigados a trazer um prato que sua mãe poderia ter preparado. Eu brinquei sobre os problemas da mamãe, com ironia e sinceridade.

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Ainda assim, nunca deixou de ser difícil. Eu não devia explicação a ninguém, em teoria, mas na prática eu dava.

Eu me assumi gay muitas vezes, mas como alguém sem mãe eu me assumia constantemente. Nunca senti que tinha o jeito certo de expressar isso. Ela era uma pessoa doente, mas nos primeiros 18 anos da minha vida ela foi uma pessoa bonita, bem-sucedida e brilhante. Ela me amava ferozmente. E então, em questão de anos, ela mergulhou em uma caverna escura onde nenhum de nós poderia segui-la.

Como você deixa alguém entrar de novo em sua vida depois de tamanha traição? Eu não tinha resposta. A cada dia eu entendia menos o vício.

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“Não é a mesma coisa”, eu disse a Soph naquela primeira noite. Sua mãe havia morrido de câncer. “Só quero dizer que também não tenho mãe. Eu não tenho minha mãe”.

“É absolutamente a mesma coisa”, disse Soph.

E como tudo o mais que ela me disse, eu acreditei nela.

No dia seguinte, ofereci um jantar de véspera de Ano Novo. Comemos salada Caesar, batatas fritas e sopa de alho-poró e bebemos vinho com rótulos de papel esquisitos. Eu disse a todos que no dia anterior tinha conhecido alguém brilhante.

Em nosso segundo encontro, caminhamos 30 quarteirões ao longo do parque até meu apartamento. Em Strawberry Fields, ela disse que um pássaro ferido tem uma chance de sobreviver se mantiver sua força de agarrar. Ela estendeu o dedo para mim, como uma garra em forma de gancho, para demonstrar.

Ela partiria em março, então, nos meses seguintes, quebrei todas as minhas próprias regras. Soph podia me ver duas vezes por semana, depois três vezes, depois quatro. Soph poderia conhecer meus amigos. Soph poderia vir aos jogos de trivia. Não iríamos sair com outras pessoas, mas só até ela ir embora.

Ao conhecer Soph, também acabei conhecendo sua mãe. Aqui estava o bar favorito de sua mãe, seu bistrô francês favorito, seu bairro de infância. Soph não apenas conhecia Nova York pelo menos tão bem quanto eu, mas também pelos olhos de sua mãe. Invejei a maneira como ela casualmente inseria a mãe nas conversas do dia a dia, incluindo-a e honrando-a, como se não custasse nada.

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“É diferente,” eu disse. “Sua mãe estava doente.”

“Mas sua mãe também está doente”, ela me disse.

Fiquei imaginando como seria homenagear minha mãe da mesma forma: honrá-la com o tipo de absolvição que costumamos reservar para os mortos. Lamentar não quem ela se tornou, mas quem ela já foi - e não se preocupar se isso era uma graça que ela merecia.

E então fiz exatamente isso: tentei reaprender a falar sobre minha mãe. Como dizer que ela era uma chef profissional que havia servido pessoas poderosas em cidades de todo o país, incluindo Nova York. Que simultaneamente ela era o tipo de mãe que pagava seus impostos, fervia brócolis com um bom sal kosher e mandava mensagens de texto com emojis que diziam: “Estou tão orgulhosa de você!”

Comecei a apontar coisas que me lembravam dela. Tamancos de trabalho usados com vestidos. Joan Osborne e Joni Mitchell. Qualquer loja que costumava ser uma Dean & Deluca. Queria saber ainda mais - como onde, tantos anos atrás, nossas mães poderiam ter se cruzado na rua.

E foi nessa altura, no estado do Arizona, que minha mãe deu entrada no hospital por causa de uma doença hepática em estágio avançado. Primeiro os médicos acharam que ela tinha dois ou três anos de vida. Isso se tornou um mês. Reservei um voo para ficar uma semana fora. E então, por fim, quando peguei o metrô para o Queens para conhecer a avó de Soph, a previsão era de dias.

Meu relacionamento com minha mãe era um filme que eu havia pausado para sair da sala, apenas para voltar e encontrar os créditos passando.

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“Se você tem algo a dizer, agora é a hora de voltar para casa”, disse meu pai quando desci na primeira parada que pude, que por acaso era no Citi Field. Quando Soph me encontrou no estacionamento, pedi a ela, em tantas palavras, e sem o discurso preparado que esperava fazer, que fosse minha namorada.

No dia seguinte, voei para Tucson. Quando meu avião pousou, depois de duas escalas, minha mãe estava inconsciente. Ainda não decidi se essa era sua versão da graça. Ainda não sei o que teria dito, além de “eu te amo” e “eu te perdoo” e “por que não conheço seu café favorito no centro da cidade? Por que nunca vou saber?”

Não tenho escolha a não ser acreditar que isso foi o suficiente.

Como no amor, não há muito a dizer sobre a morte que não tenha sido dito antes. Muitas vezes é muito tempo de espera. Eu me reuni com tias, tios e irmãos enquanto minha mãe estava internada. Discutimos se gostávamos mais do curry de berinjela que pedimos do que do frango. Jogamos jogos de tabuleiro e ouvimos a respiração de minha mãe, ficando quietos para ouvi-la devagar. Por fim, também a perdemos.

Ultimamente, quando me perguntam como estou indo (naquele tom fraco que usamos para coisas terríveis), tento usar obviedades sobre o luto como jeans velhos. Eu digo que estou bem - e também dilacerada. Eu sou a Chapeuzinho Vermelho perdida na floresta.

Nos meus melhores momentos, porém, estou aprendendo a usar essas perguntas para dar continuidade ao trabalho que comecei, ou seja: uso-as para falar da minha mãe. Eu tento o pretérito. Ela era linda, bem-sucedida e brilhante. Ela tomava seu chardonnay com gelo.

No final de cada dia, ao telefone com minha namorada 14 horas no futuro, faço perguntas a ela.

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“Você sabia - ?” Pergunto com urgência, sobre o cheiro da morte, sobre velhas mensagens de voz, sobre todos os assuntos do luto.

“Sim, eu sei”, ela sempre diz.

Ela diz que gosta da ideia de que alguém só morre no último dia em que alguém diz seu nome. É a obviedade da qual mais gosto.

Ela me promete que teremos uma eternidade para aprender a falar sobre isso. Acho que devemos passar a eternidade tentando. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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