O caminho do meio na nova Guerra Fria; leia o artigo de Max Boot

Ameaças geopolíticas do século 21 exigirão união e moderação das lideranças do Ocidente

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Por Max Boot*

Estamos vivenciando um ponto de virada na geopolítica que pode ser perturbador. A nova desordem mundial chegou principalmente com a invasão russa da Ucrânia, mas também foi catalisada por outros fatores, incluindo a ascensão da China, o programa nuclear do Irã, os descontrolados programas nuclear e de mísseis da Coreia do Norte, o declínio da globalização, e a ascensão do sentimento isolacionista e protecionista nos EUA.

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Temos dificuldade para definir o mundo pós-guerra da Ucrânia enquanto a própria guerra continua. O paralelo mais próximo que consigo pensar foi a dificuldade em definir o mundo pós-2.ª Guerra.

Aquela também foi uma época assustadora e perturbadora. A União Soviética de Josef Stalin tomou conta da Europa Oriental enquanto adquiria um arsenal nuclear. Mao Tsé-tung e seu Partido Comunista derrubaram o governo nacionalista na China. Os EUA foram tomados por uma histeria vermelha que enxergava espiões e subversivos comunistas por toda parte.

Manifestantes contra a guerra seguram cartazes enquanto marcham pela paz na Ucrânia, na cidade de Nova York, EUA, em 14 de janeiro de 2023 Foto: Jeenah Moon/Reuters

Hoje, enquanto muitos temem uma guerra nuclear como resultado de outra invasão sem provocação (desta vez, na Ucrânia), vale lembrar como o pior foi evitado há mais de 70 anos quando o então presidente americano, Harry Truman, deixou de lado os extremistas da esquerda e da direita.

Com prudência, Truman escolheu um caminho do meio, adotando uma política de contenção pensada para deter a difusão do comunismo sem correr o risco de um conflito direto com Moscou. A pedra de toque dessa estratégia envolvia forjar alianças com países de mentalidade parecida, incluindo inimigos como Itália, Alemanha Ocidental e Japão.

Ameaça

Essa ordem mundial criada por Truman e mantida por décadas enfrenta agora um desafio sem precedentes por parte da Rússia. É de importância vital derrotar a Rússia para transmitir o recado de que a agressão não compensa, ainda que a natureza dessa derrota siga indeterminada, ao mesmo tempo administrando as ameaças representadas por China, Irã e Coreia do Norte.

Esse seria um desafio monumental para qualquer presidente. Mas Joe Biden, em que pesem seus defeitos e fragilidades, está se mostrando à altura do desafio de uma forma que lembra Truman, outro presidente subestimado.

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Biden fez um trabalho particularmente impressionante ao formar uma coalizão internacional para aplicar sanções à Rússia e apoiar a Ucrânia – e manter essa coalizão unida diante das tentativas de Putin de usar a energia russa como arma econômica para provocar uma recessão na Europa e nos EUA.

Biden evitou com sabedoria propostas provocativas, como a imposição de uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia e, ao mesmo tempo, seguiu fornecendo aos ucranianos armas necessárias para se defenderem.

O presidente dos EUA, Joe Biden, com o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, em 21 de dezembro Foto: Olivier Douliery/AFP

Como Truman, ele está encontrando um caminho do meio para evitar um conflito direto entre superpotências enquanto contém o expansionismo do Kremlin. Ao conter a Rússia, Biden tem expandido os elos entre os aliados americanos na Ásia e na Europa. Isso faz parte de um projeto maior americano que busca aproximar os países asiáticos e até europeus para dissuadir a China de invadir Taiwan.

Outra boa notícia é que as crescentes ameaças à ordem mundial estão impelindo os EUA e seus aliados a reforçar suas defesas. Os gastos com defesa na Europa aumentaram muito para mais de US$ 225 bilhões antes mesmo da invasão russa da Ucrânia, enquanto o gasto americano com defesa no ano que vem chegará a impressionantes US$ 858 bilhões. Mais significativo – e surpreendente – é o aumento nos gastos com defesa na Alemanha e no Japão.

Temores

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Mas, apesar desses avanços, resta uma pergunta perturbadora: os reforços militares que estamos vendo podem levar países como Coreia do Sul e Arábia Saudita a adquirir as próprias armas nucleares para combater ameaças regionais como Coreia do Norte e Irã?

Se isso ocorrerá ou não é algo que vai depender, em boa medida, do quanto os aliados dos EUA confiam nas garantias de segurança americanas. Nossos aliados não desenvolverão armas nucleares se confiarem que os EUA vão protegê-los, mas a presidência de Trump trouxe questionamentos do fato de os EUA continuarem a ser um parceiro confiável.

Isso leva a outra questão: a política de contenção foi um sucesso tão grande durante a Guerra Fria porque foi seguida durante muitas décadas por presidentes de ambos os partidos. A pergunta hoje é se podemos chegar a um consenso bipartidário em relação à política externa. Isso parece existir quando o assunto é a China, com ambos os partidos disputando para se mostrar o mais aguerrido, mas, em se tratando da Rússia, esse consenso é ameaçado pela crescente oposição republicana ao auxílio oferecido à Ucrânia.

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A velha ordem mundial está morrendo. A nova está lutando para nascer. Nos anos 2020, assim como nos anos 1940, estamos vendo uma competição entre as forças da ordem e da desordem para definir o sistema internacional – e, mais uma vez, o resultado pode ser determinado pela política americana. A Guerra Fria teria um resultado muito diferente – e bem menos feliz – se os EUA não tivessem honrado seu compromisso com as alianças com Europa Ocidental, Japão e Coreia do Sul./TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

*Max Boot é colunista do Washington Post, escritor e analista de política externa

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