Desde a segunda-feira, uma centena de ônibus ajuda a esvaziar a “selva” de Calais, um acampamento improvisado de imigrantes nesse grande porto francês localizado na frente da costa do Reino Unido. A palavra selva é apropriada. São realmente “animais selvagens” que há meses sobrevivem no local.
A vergonha é que esses “animais” são homens, mulheres e crianças da África e da Ásia que ali se aglomeram há muitas e muitas semanas e anos, na vã esperança de atravessar para o território britânico e tentar viver uma vida digna, longe das guerras e da miséria.
A “selva” não é nova. Há mais de uma década os imigrantes, esses infelizes e heróis que desafiam a morte nas areias da África e depois nas embarcações que constantemente naufragam ao largo das costas da Itália ou da Grécia, se amontoam nesse beco sem saída ao norte da França buscando uma vida melhor.
No decorrer dos meses, o local se transformou numa pocilga, numa lixeira monumental na qual mortos-vivos se decompõem. A cada noite alguns jovens tentam embarcar às escondidas em algum dos caminhões que atravessam o túnel sob o Canal da Mancha. Raros são os que conseguem. Os outros morrem ou retornam à “selva”, para tentar a mesma coisa no dia seguinte.
Culpa. Os governos são culpados. Em primeiro lugar o britânico, que, usando como pretexto um antigo tratado chamado Touquet, rejeita abrir suas portas para esses sobreviventes. E depois a França, que permite prosperar essa ignomínia.
Às vezes, Paris, com vergonha da própria covardia, aparenta resolver a situação. Ainda em 2009, o governo de Nicolas Sarkozy expulsou todos os imigrantes da “selva”, queimou as barracas e destruiu os casebres. Seis meses depois a mesma horda de fantasmas instalou-se na mesma lama e nos mesmos excrementos.
Este ano, é o poder socialista que dirige a operação. E o faz com alguma humanidade, ajudando os 6 mil expulsos a obter os documentos necessários para se integrar à sociedade francesa.
Mas a grande culpada é a Europa. Esse continente, que conta com 500 milhões de habitantes, é rico. Mas só aceita imigrantes – vítimas dos delírios da história – a conta-gotas. Um único país mostrou-se digno. A Alemanha, ou melhor, Angela Merkel, que desafiou a opinião pública de seu país e aceitou no ano passado um milhão de refugiados.
Todos os outros países mostram o mesmo egoísmo, a mesma indiferença glacial. Todos com temores de que esses sobreviventes pobres, pouco educados, doentes, morenos ou negros, além de sujos, danifiquem seus campos, suas varandas, seus belos móveis de seus salões da Renascença.
Os piores são os países do Leste Europeu, como Hungria e Polônia, que preferem ver morrer essas crianças de “raças inferiores” junto às cercas de arame farpado com as quais se protegem. Mas as belas e ricas democracias do Ocidente, como a França, não valem muito mais.
Futuro. Essa União Europeia que há 60 anos, sem muito sucesso, procura se unir em torno de valores comuns, enfim encontrou um desses valores: um egoísmo fanático atenuado por discursos sobre o amor universal e os direitos humanos.
O drama da “selva” de Calais e as imagens degradantes projetadas pelos canais de TV europeus nas últimas 24 horas devem ser vistas como um aviso. A Europa é um continente opulento cuja população diminui. Mas à sua porta, do outro lado do mar, há países em cinzas, que titubeiam entre a miséria, a morte e a fome. Daqui a 40 anos, a África, hoje com 1 bilhão de seres humanos, terá 2 bilhões.
Além disso haverá uma outra prova, muito pior, que começa a adquirir forma. Se as previsões de alterações drásticas provocadas pelas mudanças climáticas se confirmarem, como os índices apontam, não serão mais 100 mil, ou 1 milhão, de imigrantes a vagar nos mares, nos desertos, no interior das florestas mortas, ao longo das nossas margens inundadas, mas dezenas de milhões chegarão às costas protegidas dos países da Europa. Teremos de lançá-los todos de novo ao mar? / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
*É CORRESPONDENTE EM PARIS
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