Opinião|Onde o antissemitismo e o antissionismo colidem na discussão sobre a guerra entre Israel e o Hamas

Vários esquerdistas jurarão por todo lado que não estão sendo antissemitas quando usam o termo “sionista” como o mais desdenhoso dos epítetos, mas judeus veem na crescente demonização do sionismo a reprise de uma história antiga e assustadora

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Toda vez que escrevo que não considero antissionismo necessariamente antissemita, eu recebo e-mails de leitores judeus furiosos, desapontados ou, certas vezes, simplesmente perplexos. “Israel é a entidade política por meio da qual o povo judeu exercita seu direito natural à autodeterminação e ao controle sobre seu próprio destino”, afirmou uma típica mensagem recentemente. “Como não é antissemita discriminar o povo judeu com intenção de privá-lo de seus direitos?”

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Responder essa pergunta plenamente exigiria mais que uma coluna, mas quero fazer uma breve tentativa, porque ultimamente, em razão ao sofrimento grotesco em Gaza, duas tendências infames e interligadas estão ganhando tração. Oponentes bem intencionados do nacionalismo judaico, às vezes eles próprios judeus, estão sendo difamados, falsamente classificados como antissemitas. Ao mesmo tempo, o antissemitismo está se disfarçando de antissionismo, com indivíduos usando a palavra “sionista” quando parecem querer dizer “judeu”.

Minhas próprias visões sobre o sionismo são ambivalentes e conflituosas. Sou uma judia secular, sem nenhum laço pessoal com Israel, espiritual ou não, mas também reconheço que minha capacidade de permanecer distante do país é possibilitada pelo grande privilégio de possuir um passaporte americano. Considero a ideia de Israel enquanto uma entidade colonial que eventualmente será desmantelada uma fantasia maligna — a maioria dos judeus israelenses não tem outro lugar para viver — mas também reconheço que a criação do país não pode ser desvinculada da expropriação dos palestinos.

Manifestação pela libertação dos reféns do Hamas em Jerusalém  Foto: Ammar Awad/Reuters

Direito de retorno

Sim, conforme sionistas apontam com frequência, os palestinos não foram de modo nenhum o único povo feito refugiado enquanto os mapas eram redesenhados após a 2.ª Guerra. Depois da criação de Israel mais judeus foram erradicados de países árabes e muçulmanos do que árabes foram expulsos de suas casas na Palestina histórica.

Não é culpa de Israel que alguns de seus vizinhos tenham mantido palestinos deslocados na condição de refugiados apátridas em vez de integrá-los como cidadãos plenos. Mas eu jamais poderia culpar um palestino por considerar obscenamente injusto eu ter direito de “retorno” para um país no qual não possuo nenhuma conexão familiar enquanto palestinos que perderam suas casas em 1948 não têm.

Também entendo por que muitos judeus, sobreviventes de tentativas milenares de destruí-los enquanto povo, colocam sua necessidade de autodeterminação nacional acima de qualquer outro valor. Mas não é necessário odiar os judeus para fazer um cálculo moral diferente.

Protesto em apoio aos palestinos em Gaza em Amã, na Jordânia Foto: Alaa Al-Sukhni/Reuters

O desastre de um Estado único

Neste momento, o persistente crescimento dos assentamentos na Cisjordânia criou uma solução de um Estado na prática, na qual as pessoas têm direitos e liberdades muito distintos dependendo de suas origens étnicas e religiosas. Existem indivíduos com boa vontade que percebem a saída para essa situação insuportável na luta por direitos democráticos igualitários em um Estado único que abrigue todos os habitantes do território localizado entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo. “É hora dos sionistas progressistas abandonarem o objetivo da separação entre judeus e palestinos e aceitarem o objetivo da igualdade entre judeus e palestinos”, escreveu Peter Beinart, na revista Jewish Currents, em 2020.

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A ideia de um Estado binacional apraz minha convicção na democracia e no multiculturalismo, mas na prática eu temo que isso seria um desastre que descambaria para uma terrível guerra civil. (Já é difícil flamengos e valões conseguirem compartilhar um só Estado na Bélgica.) Mas enquanto o status quo for intolerável e a solução de dois Estados apoiada por progressistas, como eu, parecer fora de alcance, é compreensível que idealistas busquem uma alternativa.

Uma reprise assustadora

Dito isto, eu não posso culpar judeus que veem na crescente demonização do sionismo a reprise de uma história antiga e assustadora. Afinal, antissionismo nem sempre é antissemitismo, mas às vezes é. E neste momento alguns oponentes de Israel parecem estar tentando provar que a comunidade judaica mainstream está correta em confundir as coisas.

Um estudante israelo-americano da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, enviou-me uma foto de uma pichação que dizia “sionistas não são bem-vindos”, com uma seta apontando para uma mezuzá pendurada no batente da porta de um dormitório. Em San Francisco, onde artistas e ativistas insistiram que o influente Centro Yerba Buena para as Artes expurgasse “financiadores e diretores sionistas”, o diretor-executivo da entidade se demitiu na semana passada citando uma “reação virulenta e antissemita direcionada a mim pessoalmente”.

Vários esquerdistas jurarão por todo lado que não estão sendo antissemitas quando usam o termo “sionista” como o mais desdenhoso dos epítetos. Um dono de bar de Salt Lake City que baniu “sionistas” de seu estabelecimento insistiu, no Instagram, que sionismo “não tem nada a ver com a linda fé judaica”.

Não posso culpar judeus que veem na crescente demonização do sionismo a reprise de uma história antiga e assustadora. Afinal, antissionismo nem sempre é antissemitismo, mas às vezes é.

Ano que vem em Jerusalém

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Mas a vasta maioria dos judeus discorda, e aspirar um retorno a Israel é um sentimento profundamente ligado à prática religiosa do judaísmo. Rituais de dois dos mais importantes feriados judaicos, o Pessach e o Yom Kippur, culminam com a expressão, “Ano que vem, em Jerusalém”. Há um longo histórico de judeus forçados a extirpar o que consideram partes cruciais de sua identidade como condição para a aceitação. Há um histórico igualmente longo desse tipo de aceitação, acaso concedida, ser passageira.

Conforme escrevo isso, a revista literária Guernica está sofrendo um derretimento em razão de um penetrante ensaio escrito por Joanna Chen, uma tradutora britânico-israelense de poesia hebreia e árabe, sobre tentar, após o 7 de outubro, “trilhar o caminho da empatia, para sentir ardor por ambos os lados” e encontrar sentido em socorrer crianças palestinas em hospitais israelenses. As palavras de Chen não expressam nada além de horror com a carnificina que acomete os civis em Gaza, mas mesmo assim ocasionaram demissões em massa entre a equipe de voluntários da Guernica; o ex-editor da revista classificou o texto como uma “apologia manuscrita ao sionismo”.

Em um movimento covarde, a Guernica recolheu o ensaio e se desculpou por tê-lo publicado. Em setores da esquerda, neste momento fanaticamente maniqueísta, judeus, especialmente judeus israelenses, só têm sua humanidade permitida se estiverem dispostos a rejeitar explicitamente o coletivo. Poucos povos além do povo judeu são sujeitos a expectativas similares.

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A analogia é imperfeita, mas eu compararia as exigências da esquerda para que judeus repudiem o sionismo às exigências da direita para que muçulmanos renunciem à sharia. Não há nada de errado em se opor à autoridade do direito religioso nem em criticar a maneira que a sharia é aplicada em certas partes do mundo muçulmano. Mas tratar muçulmanos como suspeitos se eles não romperem com suas tradições é obviamente islamofóbico.

Depois de anos argumentando que a intenção por trás das ofensas é menos importante que seus efeitos, os esquerdistas deveriam se equipar para trazer algo de sutileza e sensibilidade às discussões sobre os judeus e o sionismo. Recusar-se a fazê-lo não ajuda os palestinos de nenhuma maneira. Apenas convence judeus demais que gritos pela libertação palestina são uma ameaça. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por Michelle Goldberg
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