Pelotão ucraniano de soldados orgulhosos contém o ataque russo — por enquanto

‘Poucos esperavam tamanha força do nosso povo’, afirmou um coronel ucraniano cujos soldados repeliram o ataque russo contra a cidade portuária de Mikolaiv por três dias

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Por Michael Schwirtz
7 min de leitura

THE NEW YORK TIMES, MIKOLAIV— Os destroços de um veículo de combate russo Tigr fumegavam à beira da estrada, enquanto soldados ucranianos emergiam de suas trincheiras acendendo cigarros. Próximo de lá, um grupo de moradores da região mexia num tanque T-90 capturado, tentando fazê-lo funcionar novamente para poder ser usado pelo Exército ucraniano.

Por três dias, tropas russas lutaram para tomar Mikolaiv, mas no domingo os ucranianos fizeram os russos recuar dos limites da cidade e retomaram o aeroporto, impedindo o avanço russo ao longo da costa do Mar Negro, pelo menos temporariamente. Na manhã da segunda feira, as tropas russas haviam retomado o ataque.

“Poucos esperavam essa força do nosso povo, porque quando você não dorme há três noites e tem apenas uma ração seca porque o resto queimou, quando a temperatura está negativa do lado de fora e você não tem com o que se aquecer e você está continuamente em combate, acredite, isso é muito difícil fisicamente”, afirmou em entrevista o exausto coronel Sviatoslav Stetsenko, da 59.ª Brigada do Exército da Ucrânia. “Mas nosso povo resiste.”

Tomar Mikolaiv continua sendo um objetivo crucial das tropas russas, e os estrondos da movimentação da artilharia à distância, no domingo, sugeriam que os ucranianos não as haviam repelido para tão longe. Mas o inesperado sucesso ucraniano em defender esse importante porto, a cerca de 100 quilômetros de Odessa, sublinha duas tendências que emergem nessa guerra.

O fracasso da Rússia em tomar Mikolaiv e outras cidades rapidamente, como pareceu ter desejado o presidente Vladimir Putin, ocorre em grande parte em função do falho desempenho de suas forças militares — que sofrem com desorganização logística, decisões táticas confusas e baixa moral.

Mas é a feroz e, de acordo com muitos analistas, surpreendente capacidade de defesa das forças ucranianas, com poder de fogo significativamente menor, que tem impedido, em grande parte, o avanço russo e, por agora, evitou que Mikolaiv caia nas mãos do inimigo.

Por três dias, as tropas da 59.ª Brigada do Exército da Ucrânia, juntamente com outras unidades militares e de defesa territorial, têm defendido Mikolaiv do ataque russo, que ocorre em várias frentes, confrontando fogo pesado de artilharia, ataques de helicóptero e foguetes, alguns contra bairros civis.

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Civis de outros pontos da Ucrânia sofreram as consequências dos incessantes ataques russos. Pelo segundo dia seguido, ucranianos não puderam escapar da sitiada cidade de Mariupol, no sul do país, que continuou sob bombardeio pesado russo apesar dos esforços para a negociação de um cessar-fogo. E civis que tentaram escapar de Kiev, a capital, e de Irpin, nas proximidades, também sofreram ataques das forças russas. Morteiros disparados contra uma ponte danificada, usada por civis fugindo do combate, mataram quatro pessoas, incluindo uma mulher e seus dois filhos.

Putin, em um telefonema com o presidente francês, Emmanuel Macron, negou que as forças russas estejam atacando civis e declarou que alcançará todos os seus objetivos, “por meio da negociação ou da guerra”, de acordo com o francês.

O fato de as forças ucranianas ainda existirem e serem capazes de organizar uma resistência depois de 11 dias de guerra é, em si, uma grande façanha. A maioria dos analistas militares e até alguns generais ucranianos previram que, se a Rússia colocasse em prática uma invasão em escala total, as Forças Armadas ucranianas, que são superadas pelos adversários em quase todos os aspectos, não durariam mais do que alguns dias, talvez poucas horas. Mas ao tirar vantagem de seu conhecimento sobre o terreno, atacando colunas que avançam lentamente com unidades pequenas e ágeis, com ajuda de eficientes granadas antitanque fornecidas pelo Ocidente, as forças ucranianas conseguiram ralentar — ou até impedir — o avanço russo.

Moradores tentam ligar um tanque russo que foi desativado pelas forças ucranianas perto de Mikolaiv, Ucrânia Foto: Tyler Hicks/The New York Times

“Combatemos eles dia e noite, não os deixamos dormir”, afirmou o major-general Dmitri Marchenko, comandante das forças que defendem Mikolaiv. “Eles amanhecem desorientados, cansados. Sua moral e seu estado psicológico simplesmente quebraram.”

O governador da região de Mikolaiv, Vitalii Kim, afirmou que soldados russos estão se rendendo a um ritmo surpreendente e abandonaram tanto equipamento que não há funcionários públicos e militares ucranianos suficientes para recolher tudo. “Nossa moral está boa neste momento”, afirmou ele.

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O tempo para atitudes desse tipo pode ser curto. Um graduado oficial militar ucraniano, que falou sob condição de anonimato para discutir informações militares sensíveis, afirmou que as forças russas em torno de Mikolaiv pareciam estar se reagrupando e preparando um contra-ataque, possivelmente com mais poder de fogo. A Rússia ainda possui muito mais soldados e armas do que os ucranianos, e sua Força Aérea agora domina os céus.

Depois dos alertas quase frenéticos da Casa Branca a respeito da iminente invasão russa semanas antes do ataque se iniciar, em 24 de fevereiro, o assalto inicial pegou de surpresa a unidade do coronel Stetsenko, afirmou ele. Sua brigada estava num exercício de treinamento próximo à fronteira com a Crimeia, reunida somente pela metade, quando recebeu a ordem de se preparar para a batalha.

“Se tivéssemos recebido a ordem três ou quatro dias antes, poderíamos ter nos preparado, cavado trincheiras”, afirmou ele. Esse atraso quase levou à aniquilação de sua brigada nas primeiras horas da guerra, afirmou ele.

A força russa que emergiu da Crimeia era cinco vezes maior do que a unidade ucraniana e a sobrepujou rapidamente. A brigada ucraniana não tinha apoio aéreo e conta com poucos sistemas antiaéreos funcionais, porque a maioria desses equipamentos foi mandada para Kiev, para defender a capital. Grande parte dos tanques e blindados da brigada foi destruída no ataque inicial da aviação russa.

O comandante da brigada, coronel Oleksandr Vinogradov, perdeu o contato com o comando militar e foi forçado a tomar decisões conforme o ataque se desdobrava, afirmou o coronel Stetsenko, que esteve ao lado do comandante o tempo todo. Cercado e sofrendo baixas pesadas em razão dos ataques de caças russos, o coronel Vinogradov ordenou os tanques e artilharia remanescentes a abrir passagem através de uma unidade de forças terrestres aerotransportadas que havia se posicionado na retaguarda da brigada ucraniana.

A manobra permitiu que a principal força de combate ucraniana cruzasse a ponte sobre o Rio Dniepre e recuasse para cerca de 70 quilômetros a oeste, até Mikolaiv, onde seus soldados puderam se reagrupar e se reunir com outras unidades para continuar a luta.

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“Os caças do inimigo atacaram nossos tanques, vários tanques foram atingidos e incendiados, e o restante permaneceu no combate”, afirmou Stetsenko. “Eles sabiam que vinha mais gente atrás que dependia deles, e deram suas vidas para abrir caminho através da ponte para chegar à outra margem.”

A tática funcionou, mas os custos foram altos. Ao recuar para Mikolaiv, a brigada do coronel Stetsenko teve de sacrificar Kherson, que em 2 de março se tornou a primeira grande cidade ucraniana a cair. Sua brigada não teve escolha, afirmou o coronel Stetsenko. Se seus soldados tivessem tentado defender Kherson, as tropas russas poderiam tê-los flanqueado e isolado, abrindo caminho para o oeste e Odessa.

A defesa feroz e inesperadamente capaz das forças ucranianas, significativamente desarmadas, que em grande parte paralisou o avanço russo e, por enquanto, impediu que Mikolaiv caísse nas mãos da Rússia Foto: Tyler Hicks/The New York Times

Com uma barba branca e bem aparada e linhas profundas marcando o rosto em torno da boca, onde provavelmente já houve covinhas, o coronel Stetsenko é uma figura incomum no campo de batalha. Ele tem 56 anos e estava aposentado da vida militar havia dez anos quando decidiu se realistar, em 2020. Na época, as forças ucranianas combatiam a insurgência apoiada pelo Kremlin no leste da Ucrânia, e o coronel Stetsenko sentiu que tinha de fazer sua parte.

“Eu sabia que muitas pessoas que já tinham servido estavam cansadas”, afirmou ele. “É difícil viver tanto tempo longe da família, e precisávamos de recrutas. Então fui ao centro de recrutamento militar e firmei um contrato.”

Tal dedicação explica de certa maneira a feroz resistência apresentada pelos soldados ucranianos no campo de batalha, enquanto soldados russos parecem estar se rendendo em grandes números. Um apurado conhecimento sobre os militares russos dá às forças ucranianas outra vantagem.

O coronel Stetsenko serviu com russos como um jovem soldado do Exército soviético nos anos 80, quando ele foi posicionado no Extremo Oriente. Agora, soldados com base em alguns desses mesmos quartéis em que ele passou a juventude estão lutando contra ele.

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“Agora eles são meus inimigos”, afirmou ele. “E farei de tudo para garantir que cada um deles que apareça aqui com armas, como invasor, permaneça aqui, como fertilizante para nossa terra.”

Na noite do domingo, o coronel Stetsenko retornou para a linha de frente nas proximidades da cidade onde o som da batalha soava novamente, enquanto as tropas russas se reagrupam para o contra-ataque. Assim tem sido esta guerra, passada quase uma semana e meia, em marés de violência centradas em poucas cidades-chave, como Kiev e Kharkiv.

Em Mikolaiv, o coronel Stetsenko e seus camaradas conseguiram um dia de descanso para a cidade. O céu chegou a abrir por algumas horas durante a manhã, e nevou levemente durante a tarde. Ruas que haviam ficado desertas até poucos dias antes ganharam vida outra vez, repletas de mães empurrando carrinhos de bebê e pessoas levando cachorros para passear.

Nas imediações de onde os combates foram mais intensos, Nikolai Biliashchat, de 54 anos, juntou-se a alguns vizinhos para trabalhar sobre o tanque russo T-90 que agora ostenta uma bandeira ucraniana. O veículo foi danificado quando forças ucranianas explodiram uma ponte sobre a qual ele passava, e agora somente a esteira do lado esquerdo do blindado funciona bem.

“Fui motorista a vida inteira, então sei um pouco de mecânica”, afirmou Bilyashchat. “Mas não entendo nada de tanques.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL