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Perfil: Pete Buttigieg, de manifestante pacifista a combatente no Afeganistão

Foi somente depois da eleição de Obama e apenas alguns meses antes de Buttigieg iniciar sua própria carreira política que ele finalmente procurou o escritório de recrutamento

Por Steve Hendrix
Atualização:

SOUTH BEND, EUA – Não aparecem muitos bons candidatos a oficial nesse centro de recrutamento da Marinha, um escritório de um cômodo só, vizinho a uma tabacaria, no subúrbio da cidade. Aqueles que tentam um posto costumam entrar para as fileiras por meio de programas de treinamento para oficiais da reserva ou Annapolis (escola naval).

Mas, um dia, em 2009, apareceu um pretendente bem raro: Buttigieg, Peter, 27 anos. Formado em Harvard. Bolsista Rhodes. Consultor da McKinsey. Fã de poesia nórdica. Garoto da cidade.

Pete Buttigieg foi prefeito de South Bend, no Estado de Indiana Foto: Gary He/EFE

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Uma década depois, Buttigieg, P., é mais conhecido como o prefeito Pete de South Bend, político chamado pelo primeiro nome graças a seu sobrenome trava-língua.  dois mandatos mais tarde, Pete está hoje em campanha pela indicação presidencial democrata. Continua sendo um dos poucos luminares a começar o serviço militar neste modesto posto de recrutamento.

Enquanto era pesado e medido, iniciou-se um processo que não apenas o colocaria em perigo potencial, mas também o forçaria a enfrentar um conflito de toda a vida no âmago de sua identidade – sua sexualidade. Mas esse processo também lhe permitiria atender a um solene chamado familiar para a carreira militar e o deixaria adicionar uma credencial valiosa ao seu currículo, apenas alguns meses antes de iniciar a carreira na política eleitoral: veterano de guerra.

Hoje, em meio a um campo repleto de postulantes, Buttigieg é o único dos candidatos democratas com experiência militar. Seria o primeiro candidato à presidência com serviço militar no exterior eleito em três décadas. E já previu como poderia usar suas credenciais em uma corrida contra o presidente Donald Trump, que se valeu de dispensas médicas para não servir no Vietnã.

“Eu estava arrumando minhas malas para o Afeganistão enquanto ele apresentava a 7ª temporada de ‘O Aprendiz’”, disse ele, em maio.

VIDA ESTUDANTIL

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A ideia de se apresentar diante de um recrutador veio depois de anos de incerteza sobre sua vontade de entrar naquela guerra contra o terrorismo que começara em uma manhã de setembro de 2001, enquanto ele dormia até tarde no dormitório da faculdade. Ele já vinha estudando história e árabe, e os ataques do 11 de Setembro fizeram com que a possibilidade de pegar em armas parecesse mais pessoal, disse Buttigieg em entrevista.

“Eu sabia que a guerra havia tocado meu país e que, de um jeito ou de outro, eu acabaria me envolvendo nela”, disse ele em seu escritório de campanha com vista para a paisagem cinzenta do centro de South Bend.

Pete Buttigieg em um evento em Concord, New Hampshire Foto: Eric Thayer/Reuters

Ainda assim, ele não participou do conflito enquanto subia cada vez mais alto em torres de marfim em Massachusetts e na Inglaterra, enquanto a Guerra do Afeganistão se alargava para incluir mais uma no Iraque, enquanto ia se tornando cada vez mais ativo na política democrática e se opondo às políticas de segurança nacional do presidente George W. Bush.

Foi somente depois da eleição de Barack Obama e apenas alguns meses antes de Buttigieg iniciar sua própria carreira política que ele finalmente procurou o escritório de recrutamento. Só então decidiu entrar no conflito que, seis anos antes, havia denunciado no púlpito de um comício antiguerra.

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HISTÓRICO FAMILIAR

Na verdade, a guerra fazia parte da história da família Buttigieg. Seu tio-avô fora capitão da Força Aérea, morto em um acidente em 1941. Pete idolatrava o retrato a óleo do tio Russell, que ainda está pendurado na sala de estar de sua mãe, em South Bend. Ele folheava o diário de bordo e sonhava ser piloto.

Seu avô fora oficial de carreira do Exército, e ele se lembra de ir com a avó ao Fort Bliss. Adorava a saudação rígida que os guardas do portão faziam a seu Caprice Classic. Era o filho estudioso de dois professores de Notre Dame, mas as forças armadas mantinham um certo fascínio.

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Pete Buttigieg com seus pais no aeroporto de South Bend, após retornar do Afeganistão Foto: Álbum de Família/WashingtonPost

“Quando criança, tinha a sensação de estar ligado à vida militar”, disse Buttigieg. Mas a conexão foi desaparecendo à medida que seus talentos acadêmicos o impulsionaram para Harvard e, depois, Oxford.

Depois da formatura, ele continuou trabalhando na política partidária, fazendo campanha pela candidatura presidencial de John F. Kerry no Arizona, em 2004. Quando Kerry perdeu, o chefe de Buttigieg, futuro assistente do secretário de Defesa, Doug Wilson, ofereceu a ele uma posição em Washington.

“Acho que ele se interessou em trabalhar comigo porque viu nisso uma oportunidade de aprender sobre política externa e assuntos internacionais”, disse Wilson, que na época trabalhava para o ex-secretário de Defesa, William Cohen. Wilson é agora conselheiro da campanha Buttigieg.

RESSALVAS SOBRE A GUERRA

Em 2007, Buttigieg terminou a graduação em economia em Oxford e se mudou para o escritório da McKinsey & Co. em Chicago. No ano seguinte, o trabalho de consultor que o tornaria especialista nos preços de supermercado também lhe daria um primeiro gosto da zona de guerra. Buttigieg visitou o Iraque e o Afeganistão por causa de projetos financiados pelo governo dos Estados Unidos para estimular o desenvolvimento do setor privado em países ainda mergulhados na violência.

Mas Buttigieg ainda tinha ressalvas quanto a se alistar durante o governo Bush. “Seu serviço militar tem de ser neutro em relação à política, mas, quando você se junta às forças armadas sob um certo presidente, você está fazendo uma escolha”, disse ele.

Um ano depois, Obama se tornou o comandante-chefe. “A gente estava tomando uma cerveja e ele disse: ‘Falando nisso, entrei para a Marinha’”, lembrou Eric Lesser, amigo dos tempos de Harvard e agora parlamentar em Massachusetts. “Fiquei preocupado. As coisas não estavam indo bem no Afeganistão”.

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Sua mãe apoiou o compromisso do único filho com a tradição militar da família. E ficou preocupada com aquela velha batida à porta, a mesma que sua avó ouvira depois da queda do avião do tio Russell.

“Ela ficou orgulhosa com aquela estrela dourada”, disse Anne Montgomery, 74 anos, em entrevista. “Era uma marca de honra, mas também a lembrança de que perdera um filho”. Ela pensou naquela estrela dourada quando seu próprio filho se alistou. “Estávamos em guerra, você sabe."

VIDA NA POLÍTICA

Buttigieg jurou bandeira em setembro de 2009. Alguns meses depois, anunciou que desafiaria o tesoureiro republicano do Estado de Indiana, Richard Mourdock, nas eleições de 2010. O fato de ser oficial militar soaria bem aos ouvidos do eleitorado conservador do Estado. Mas Buttigieg disse que nunca trouxe isso à tona.

Buttigieg perdeu a eleição por larga margem. Mas ganhou a seguinte, para prefeito de South Bend, um ano depois. Dessa vez, ele divulgou suas credenciais de reservista, em parte porque sabia que ser prefeito não o impediria de ser convocado.

Com dois anos de mandato, ele foi chamado, em meio ao pior escândalo de sua administração, que abalou as relações raciais na cidade. Logo depois de assumir o cargo, Buttigieg havia exonerado um popular chefe de polícia afro-americano, por gravar em segredo subordinados brancos que supostamente haviam feito comentários racistas. Buttigieg se recusou a divulgar as gravações, alegando restrições legais, o que enfureceu ativistas e alguns membros do conselho da cidade.

Pete posa com o marido, Chasten Buttigieg, e simpatizantes em Des Moines Foto: Todd Heisler/The New York Times

Em 2014, quando a controvérsia reverberou em South Bend, Buttigieg transferiu legalmente seus poderes como prefeito para Mark Neal, o controlador da cidade, e embarcou em um avião para o Afeganistão. Alguns ativistas afro-americanos até hoje criticam o momento de sua partida. Mas muitos moradores manifestaram apoio à viagem do prefeito para uma zona de guerra.

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“As pessoas ficaram orgulhosas dele”, disse Lesser, que foi a um jogo de futebol da Notre Dame com Buttigieg antes de ele partir. “O cara do cachorro-quente ficou falando, ‘se cuide lá, prefeito’”.

A VIDA NO EXÉRCITO

Para o Tenente Buttigieg, boa parte da guerra afegã se desenrolou na “lata de atum” – um contêiner adaptado que ficava dentro do quartel dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no centro de Cabul.

Era um trabalho burocrático sem muitos burocratas. Durante parte de seu turno, apenas um outro membro do Exército trabalhou com Buttigieg. Quando se levantava depois das refeições, ele contou em seu livro, falava, em tom de brincadeira, que precisava passar em revista seus soldados. “Você quer dizer o seu soldado”, os amigos respondiam.

Buttigieg trabalhou para a Célula de Ameaças Financeiras do Afeganistão, uma equipe de investigadores liderada pela Drug Enforcement Administration (DEA), a divisão de repressão e controle de narcóticos dos Estados Unidos, que tem um histórico célebre na guerra afegã. Nos anos anteriores à chegada de Buttigieg, dezenas de pessoas do Departamento do Tesouro, do FBI e de todos os braços das forças armadas descobriram uma corrupção desenfreada dentro do governo afegão e um esquema Ponzi de fraude no maior banco do país.

Pete, aos 4 anos, em um piano; ele se graduou em Economia em Oxford Foto: Álbum de Família/W. Post

Em 2014, esse trabalho estava praticamente encerrado. O governo Obama vinha retirando as tropas e escolhera não antagonizar com o presidente Hamid Karzai por causa desses sensíveis casos de corrupção. A unidade de ameaças financeiras se reduziu e assumiu uma missão menos confrontadora: interromper o fluxo de dinheiro para o Taleban e outros grupos insurgentes.

Buttigieg chegou quando a guerra estava acabando. Sua unidade estava sob processo de desligamento. O jovem e ávido tenente acabou encarregado de descartar os computadores do escritório.

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“Quando você está chegando, você quer uma missão. Quer construir coisas. E acaba descobrindo que, na verdade, está fazendo uma retirada ordenada”, disse Buttigieg. “Tive aquela sensação de estar chegando depois do auge da coisa”.

NÃO PERGUNTE, NÃO FALE

Buttigieg começou na base aérea de Bagram, onde trabalhavam seus colegas militares, depois se transferiu para Cabul, para servir como elo entre a unidade e o quartel dos Estados Unidos e da OTAN. Seu comandante, o coronel Guy Hollingsworth, escolheu Buttigieg porque era inteligente e poderia defender as prioridades da equipe nos últimos meses.

“Eu precisava de alguém em quem pudesse confiar e que fosse um bom comunicador”, disse Hollingsworth. “Ele era articulado e tinha a mente afiada."

Buttigieg fez pouco do fato de ser prefeito no Centro-Oeste, não contou isso nem ao colega com quem compartilhou o quarto. Sua política liberal também era um mistério para seu comandante, mórmon e conservador convicto. “Ele não chegou com uma faixa dizendo ‘eu sou isso e aquilo’”, lembrou Hollingsworth. “Pete foi muito humilde nesse ponto”.

Pete Buttigieg e seu marido, Chasten, em Des Moines; o democrata se declarou publicamente gay antes de ser eleito prefeito, em 2015 Foto: Eric Thayer/Reuters

Ele foi discreto também em outro assunto. No Afeganistão, ninguém sabia que ele era homossexual. Quando Buttigieg se alistou, ainda não se conhecia, pelo menos não com clareza, disse ele. Aquela luta da vida inteira para entender sua sexualidade apenas começara a se resolver, e a política militar do “não pergunte nada, não fale nada” ainda estava em vigor. Quando ele foi convocado, essa política não estava mais em vigor. Mesmo assim, Buttigieg não falou nada.

Ouviu bastante “humor homofóbico ocasional”, como ele disse, nas salas de musculação e nos refeitórios militares. Não conhecia nenhum alistado que se assumisse abertamente e não conseguiu se convencer a ser o primeiro. “Simplesmente não estava pronto”, disse ele.

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Certa noite em Cabul, os funcionários municipais de Indiana avisaram Buttigieg sobre algo que ele não esperava: South Bend iria realizar seu primeiro casamento gay. Neal o oficiou na sala de conferências da prefeitura, dois dias depois de um juiz federal decidir que a proibição de Indiana ao casamento entre pessoas do mesmo sexo era inconstitucional. “Lembro que vi as fotos”, disse Buttigieg, “e fiquei comovido”.

Sete meses depois, sua missão terminou. Buttigieg, que fora levado pelos pais até o embarque para o Afeganistão, foi recebido por eles quando voltou para casa.

VOLTA A INDIANA

Mas agora estava determinado a acolher outros amores na vida. Ele assumiu para mais alguns amigos, depois para a mãe e o pai, depois, em artigo publicado em 2015, cinco meses antes de ser eleito para um segundo mandato, ele se declarou publicamente gay. Três anos depois, ele era o noivo de um casamento com o professor de ensino médio Chasten Glezman.

O serviço militar ajudou a tornar essa alegria possível, ele diz agora. A Marinha o permitiu cumprir um legado da família. Sua medalha de campanha no Afeganistão também fez com que ele completasse um perfil de candidato que parece ter sido montado em um laboratório democrata: prefeito no Cinturão da Ferrugem, garoto da Ivy League, veterano, casado e homossexual.

Pete, ainda bebê, no colo do pai, Joe, que era professor em uma família de militares Foto: Álbum de Família/ W. Post

E isso pode torná-lo o primeiro ocupante do Salão Oval com experiência militar desde George H.W. Bush. Ele evita detalhes sobre como isso afetaria sua liderança.

“Se aprendemos alguma coisa nesta última década e meia de guerra sem fim, é que você não pode fazer ameaças vazias de envolvimento militar”, disse Buttigieg recentemente, em entrevista ao Washington Post .

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Se for eleito, Buttigieg assumirá o comando de uma guerra sem fim que ele primeiro denunciou, depois abraçou e ainda tenta entender. E estará não apenas perto da bandeira, mas será responsável por ela. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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