Putin some de vista em meio a avanço do coronavírus na Rússia

Com mais de mil mortos e 100 mil contaminados, covid-19 avança no país, mas o líder russo deixa as ações contra a epidemia na mão de seus assessores

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Por Andrew Higgins
Atualização:

MOSCOU - Este deveria ser um momento de triunfo para o presidente Vladimir Putin, uma comemoração de seus grandes êxitos em restabelecer o estado russo como um lugar de orgulho no mundo e consolidar seu domínio do poder, tudo finalizado por um desfile militar glorioso na Praça Vermelha, em 9 de maio, o 75º aniversário da vitória do Exército Vermelho sobre a Alemanha nazista. Mas o coronavírus mudou tudo isso. Agora, tendo se curvado ao inevitável e cancelado o desfile, Putin parece mais um monarca entediado confinado em um palácio do que um executivo proativo, checando o relógio durante videoconferências com subordinados sobre a pandemia, que são transmitidas pela televisão, à medida que seus índices de popularidade caem.

Vladimir Putin comanda reunião de gabinete da residência oficial em Novo-Ogaryovo, fora de Moscou Foto: Alexey DRUZHININ / SPUTNIK / AFP

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Rússia ultrapassou a marca de 1 mil mortos pelo novo coronavírus. A informação foi divulgada pelas autoridades sanitárias do país nesta quinta-feira, 30, por meio de um balanço, que também aponta mais de 100 mil casos diagnosticados de covid-19.

Em meio ao caos, Putin deixou de lado sua marca registrada nos últimos 20 anos: a de um homem de ação, um líder hiperativo sempre pronto para enfrentar os inimigos do Kremlin em casa e no exterior, e até tigres selvagens em florestas remotas da Rússia.

Confrontado com o coronavírus, no entanto, o líder que foi reeleito em 2018 com quase 80% dos votos e que não enfrenta sérias ameaças ao seu poder tem sido estranhamente passivo.

"Ele tem medo - tem medo de suas avaliações e do sistema que ele passou 20 anos criando", disse Gleb O. Pavlovsky, um ex-conselheiro desiludido do Kremlin. Diante de um inimigo viral que ele não pode derrotar facilmente, "Putin entende que a melhor coisa a fazer é ficar de lado", acrescentou Pavlovsky.

Cartazes em Moscou pedem para que russos se resguardem durante pandemia Moscou Foto: EFE/EPA/MAXIM SHIPENKOV

Além dos problemas de Putin, o colapso dos preços do petróleo afasta um grande fluxo de receitas para programas sociais, enquanto a economia dependente de petróleo e gás da Rússia deverá diminuir 6% este ano. 

Mas a agitação no mercado global de petróleo, ao contrário da crise da saúde, pelo menos se encaixa nos fortes processos de geopolítica e diplomacia de alto risco de Putin. Seus esforços conjuntos com o presidente Donald Trump e o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, da Arábia Saudita, pouco fizeram para sustentar o mercado, mas mostraram Putin fazendo o que mais gosta: demonstrar a voz indispensável da Rússia nos assuntos globais.

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Por outro lado, a pandemia apenas destacou o que sempre foi a maior vulnerabilidade de Putin: uma acentuada falta de interesse ou sucesso em lidar com problemas domésticos complexos, como hospitais em ruínas, bolsões de pobreza arraigados e anos de queda na renda real.

Além disso, um referendo de 22 de abril sobre emendas constitucionais teve que ser cancelado por causa do vírus. As emendas, já aprovadas pela legislatura da Rússia, permitem que Putin ultrapasse os limites do mandato e permaneça no poder até 2036.

O bailarino Ivan Zaytsev, principal do Teatro Mikhailovski, e seu filho, estudante da Academia Vaganova, treinamconfinados em sua casa, em São Petesburgo, em meio à pandemia na Rússia Foto: Anton Vaganov/Reuters

Depois de passar quase despercebido quando o coronavírus apareceu pela primeira vez na Rússia, no final de fevereiro e início de março; em abril, Putin apareceu quase diariamente na televisão, realizando teleconferências de sua residência nos arredores de Moscou. Mas ele não parece estar verdadeiramente ali. 

"Ele dá a impressão de estar cansado e até entediado", disse Yekaterina Schulmann, ex-integrante do conselho consultivo do Kremlin para a sociedade civil e os direitos humanos. 

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O índice de aprovação de Putin, que era de 69% em fevereiro, caiu para 63% em março, de acordo com o Levada Center, uma organização independente de pesquisas sediada em Moscou. A maioria dos líderes na Europa viu seus índices dispararem durante os confinamentos por conta do coronavírus.

A opinião pública da Rússia é muito volátil. As pessoas têm medo do vírus e também temem pela economia”, afirmou Schulmann. Putin "não consegue encontrar um tom que ressoe" com o público, acrescentou.

Também misturados com o coronavírus, no entanto, estão os cálculos dos oponentes de Putin, incluindo Aleksei A. Navalny, o líder de oposição mais proeminente da Rússia, que passou de denunciar o Kremlin por construir um estado policial corrupto a exigir um estado de emergência, algo que apenas Putin pode declarar.

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Amortecida pelo aumento das reservas financeiras estimadas em cerca de US$ 600 bilhões, a Rússia tem mais espaço de manobra do que muitos países. O país também registrou relativamente poucos casos de coronavírus - um total de quase 100 mil na quarta-feira, em comparação com cerca de 1 milhão nos Estados Unidos, e um baixo número de mortos,972, em comparação com o número dos Estados Unidos de mais de 58 mil. 

Mas a epidemia começou mais tarde na Rússia e ainda está piorando. E os danos econômicos têm sido severos, com trabalhadores de fora de um setor estatal, que fornecem a base mais sólida de apoio a Putin, sendo particularmente atingidos quando restaurantes, salões de cabeleireiro e muitas outras empresas privadas fecham devido ao isolamento.

Confrontado em 2014 com uma ameaça igualmente grave aos interesses russos criada pela expulsão do presidente pró-Kremlin da Ucrânia, Putin aproveitou o momento anexando a Crimeia.

Quando, dois anos depois, parecia que o aliado mais próximo da Rússia no Oriente Médio, o presidente Bashar Assad da Síria, também poderia cair, Putin interveio para reverter o curso da guerra civil da Síria enviando aviões e soldados russos.

O coronavírus, no entanto, muitas vezes o faz parecer despreparado. Em março, ele tentou reproduzir as cenas de ação que moldaram sua imagem no passado, como voar em um avião de caça, perseguir tigres no Extremo Oriente russo e descer no Mar Báltico em uma batisfera.

Mas sua demonstração de valentão frente a uma pandemia que se alastrava não funcionou como planejado: ele visitou pacientes infectados em um novo hospital de Moscou vestido com um traje de proteção amarelo, apenas para descobrir alguns dias depois que o exame do médico-chefe que o guiou durante a visita e com quem trocou um aperto de mão sem proteção alguma, deu positivo para a covid-19.

Desde então, Putin tem se refugiado em sua casa de campo. Foi ali, aquecido pelas chamas suaves de uma lareira em uma sala de estar aconchegante, que em 19 de abril ele gravou uma calma mensagem de Páscoa ortodoxa ao país. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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