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Quando o movimento ‘Vidas negras importam’ chega aos EUA rural e branco

Jovens negras em Rocky Mount resolvem começar protestos por igualdade racial e enfrentam brancos que defendem histórico confederado

Por Hannah Natanson
Atualização:

ROCKY MOUNT, VIRGÍNIA - Bridgette Craighead quase chegara no topo do monte e parou cambaleando em suas botas de estampa de leopardo, para observar o soldado de mármore branco em uniforme de confederado.

Do alto do obelisco de granito dedicado aos “Confederados mortos”, ele dominava a praça coberta de grama, na frente ao Fórum do Condado de Franklin. Uma das mãos do soldado estava apoiada no quadril. A outra segurava um fuzil.

Durante protesto Black Lives Matter, motorista contrário aos protestos ofende manifestantes Foto: The Washington Post by Heather Rousseau

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Bridgette, de 29 anos, olhou para as próprias mãos. Ajeitou o megafone que segurava e havia envolvido em uma fita com estampa de leopardo, para combinar com as botas e a frase “Black Lives Matter” na sua camiseta. Sacudiu seu cabelo afro e disse a si mesma que era uma guerreira. Não tinha nenhuma importância que esse fosse o seu primeiro protesto, organizado quatro dias antes pelo Facebook. Não tinha importância se esse era o primeiro protesto do movimento Black Lives Matter que a cidade republicana Rocky Mount, rural, branca, via. Ela estava pronta para liderar o ato.

“F... todos vocês”, disse uma voz baixa. Bridgette se virou e viu um rosto branco na janela de uma picape preta, e o dedo médio esticado no ar. “Vocês todos estão desrespeitando minha estátua”.

Era dia 3 de junho. Nove dias depois que um policial de Minnesota havia esmagado com o joelho o pescoço de George Floyd. Nove dias desde que os Estados Unidos explodiram em protestos por várias cidades, arrastando os americanos em uma onda que chegara a cada região do país, denunciando o racismo e a violência policial com uma força sem precedentes. Em cada canto, menos em Rocky Mount, a sede do Condado de Franklin na Virgínia do sul.

Imagem capturada porcelular mostra momento em que o policial de Minneapolis Derek Chauvin mantém seu joelho sobre o pescoço de George Floyd, que morreu momentos depois. Foto: Darnella Frazier / Facebook/Darnella Frazier / AFP

Bridgette cresceu neste condado de cerca de 56 mil habitantes, enroscado nas Montanhas Blue Ridge, onde cerca de 90% da população é branca. A própria Rocky Mount é aproximadamente 70% branca, e na escola pública de Bridgette, ela era quase sempre a única criança negra.

Eleitorado de Trump

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Este é o lugar em que as bandeiras confederadas ondulam ao lado das faixas de Trump 2020, na frente das casas e das lojas. Onde em 2010 as autoridades locais reconstruíram e reinstalaram a estátua confederada com sua dedicatória ao custo de mais de US$ 100 mil, depois que o motorista de uma picape acidentalmente a demoliu.

Os historiadores locais compararam o fato à morte de uma pessoa da família. Onde no início deste ano, o superintendente branco menosprezou a proibição de material dos confederados nas escolas, proposta pelo único membro negro do conselho da escola, afirmando que ninguém iria se preocupar com “uma bandeirinha Rebelde na lapela”.

Este é o local de nascimento do famoso educador negro Booker T. Washington - hoje enaltecido por um monumento nacional - e o local onde ele foi libertado. Mas a indicação histórica do país nota apenas que “o general Jubal A. Early viveu neste condado”.

No dia 20 de junho, foi iniciada uma petição para a retirada da estátua de um soldado confederado, na frente do Fórum do condado de Franklin, em Rocky Mount, que pode ser vista da rua principal.

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Ninguém esperava que os protestos que se seguiram ao assassinato de George Floyd chegassem a Franklin. Pelo menos, não a sua população branca, nem os seus jovens, e menos ainda os seus habitantes negros mais velhos, que lutaram pela integração nas escolas, nos anos 1960. E depois observaram - com o horror que deu lugar, ao longo das décadas, a um desespero sombrio - enquanto as coisas voltavam a ser como haviam sido antes para os negros, como cidadãos de segunda classe, embora, na realidade, não mais para a lei.

Mas Bridgette, observando os tumultos na televisão, sentira um chamado. Telefonou para a prima Katosha Pointdexter, de 33 anos, que estava assustada, mas que dormia apesar disso e acordara também sentindo o chamado.

A elas se juntou uma terceira jovem negra, Malala Penn, de 23 anos, e as três decidiram: Estava na hora de mudar. Pensaram que seria um teste: Se isto pudesse acontecer aqui, poderia acontecer em qualquer outro lugar.

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Bridgette sabia que não conseguiria atrair as multidões que via nas principais cidades pela TV. Nem os milhares de manifestantes levantando cartazes; com poucos carros, se é haveria, buzinando em apoio. Ela sabia que haveria ódio e o ódio havia chegado, cuspindo, com rosto vermelho e dentro de uma picape preta.

Virou a cabeça e esticando o dedo médio, baixou os olhos para as dezenas de pessoas que começavam a se juntar em baixo do monumento: brancos, negros, asiáticos e mexicanos americanos, jovens e velhos, inclusive um homem que mais tarde contou para ela que havia marchado com Martin Luther King Jr. Era mais gente do que ela jamais vira reunida em Rocky Mount - exceto no desfile de Natal da cidade, que era sempre composto completamente por brancos.

“É com isto que vamos ter de lidar todo o dia”, ela disse aos manifestantes da praça. Os seus manifestantes, pensou. “Eu quero que vocês só respondam: ‘Nós amamos vocês’ e eles irão ouvir vocês. Eles terão de ouvir vocês”. E esperou que isso fosse verdade.

Duas semanas mais tarde, no dia 19 de junho - no dia, 155 anos antes, em que os últimos escravos negros dos Estados Unidos ouviram que estavam livres - Malala Penn entrou em uma lanchonete com um cartaz debaixo do braço.

O cartaz dizia: “JUNETEENTH” E “#BlackLivesMatterFC”, embora o capítulo do movimento ‘Vidas Negras Importam’ do condado tecnicamente ainda não existisse. Malala pedira online para ser aceita uns dias antes, enquanto Bridgette e Katosha olhavam por cima dos ombros dela. Ainda aguardavam uma resposta.

Malala dirigiu-se para o Hub Restaurant, um edifício baixo de teto verde, em um cruzamento movimentado, famoso em Rocky Mount por seus sanduíches “Club Hub” e, entre os moradores negros, por sua história racista.

Abriu a porta da frente. Os clientes do começo da tarde se viraram e olharam. O outro único rosto negro que Malala viu era o do cozinheiro, que mexia de maneira barulhenta nas panelas por trás de um balcão alto em uma cozinha minúscula. Aproximou-se de uma garçonete e pediu para falar com o gerente.

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“Agora na hora do almoço, não”, disse a mulher. “Tudo bem”. Malala se aproximou ainda mais e ergueu o cartaz. “Bom, eu faço parte do Vidas Negras Importam e hoje nós comemoramos o Juneteenth. Será que você poderia colocar isto na vitrine em sinal de apoio?”

Janela histórica

Era a primeira vez que Malala entrava em um restaurante em mais de dez anos. Ela herdara seu desdém do avô, que cresceu quando o local ainda obrigava as pessoas negras a retirar sua comida por uma janelinha na parte de trás do edifício com esta finalidade. Mesmo depois da integração, ele se recusava a gastar o seu dinheiro no restaurante, e morreu perto dos 100 anos sem ter posto os pés em seu interior uma vez sequer.

Malala sabia que a janela traseira ainda estava lá. Alguém a pintara, fechada mesmo, e instalara na sua frente três tanques de propano. Mas continuava lá.

Na realidade, grande parte do condado ainda era e se sentia como os avós de Malala lembravam. Os negros ainda não chegavam até Endicott, uma região montanhosa que em uma ocasião fora a fortaleza da Ku Klux Klan. O comércio e a Câmara Municipal da cidade - a polícia, e os músicos convidados para cantar no centro teatral local - eram ainda na maioria brancos.

Em geral, as pessoas que passavam por lá ainda tinham de atravessar por Boones Mill, uma pequena cidade que dependia dos seus dois postos de gasolina e de uma loja de artesanato decorada com estátuas de concreto e grandes bandeiras confederadas. “Você está entrando no Condado de Franklin”, dizia um cartaz, e era mesmo. As bandeiras na frente da Boones Mill Produce Co. eram praticamente a primeira coisa que os visitantes viam.

No interior da loja, um homem, que disse ser funcionário ali, e deu apenas o seu nome, Gary, contou que o seu tataravô combatera pelos confederados. Os negros quase nunca vinham à loja, disse Gary ao repórter. Mas os turistas brancos vez por outra entravam falando aos gritos que ele deveria tirar as bandeiras de lá.

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Às vezes, Gary também respondia gritando. “Nós não somos racistas”, lembrou que berrou certa vez para um homem, com a intenção de irritá-lo. “Nós não gostamos de n... (xingamento contra negros), sp...(xingamento contra latinos) e judeus”.

Malala acelerou ao atravessar o cruzamento, o que acontecia toda vez que ela ia de casa para a Universidade Mary Baldwin em Staunton, onde estava terminando o último ano. Ela odiava as bandeiras. Odiava o cruzamento. Nunca parava a não ser que estivesse quase sem gasolina.

Uma parte dela também odiava estar no restaurante. Dava para sentir os olhares. No entanto, também se sentia poderosa, consciente de que estava deixando aqueles velhos brancos incomodados.

A garçonete pegou o cartaz de Malala. Quando os donos apareceram no fim da tarde, falou, explicaria o pedido de Malala e eles decidiriam. Mais tarde, no mesmo dia, Malala voltou para verificar. As vitrines estavam vazias. Ela entrou e se aproximou do gerente.

“Nós não colocamos folhetos para quem quer que seja”, disse. “A única coisa que está nas nossas vitrines é o que temos para comer e beber”.

“É a regra para...?” perguntou Malala.

“Para todo mundo”, ele disse, entendendo mal sua pergunta. “Não fosse por isso, nós o faríamos”.

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Ela fez uma expressão de sarcasmo, agradeceu e saiu.

Naquela noite, Malala, Bridgette e Katosha usaram o microfone uma atrás da outra e encararam o público de cerca de duas dúzias de pessoas, brancas e negras, que se reuniram em uma praça ao ar livre onde normalmente ocorre a feira de agricultores de Rocky Mount aos domingos.

As mulheres chegaram duas horas mais cedo para pendurar placas nas barracas verdes vazias - um lençol com os dizeres “VIDAS NEGRAS IMPORTAM” e cartazes menores dizendo “Se eu obedecer, ainda assim irei morrer?” Elas montaram um estande para registrar os eleitores e outro para incentivar os moradores a concluir o Censo de 2020. E pediram 20 pizzas da Domino's.

O dia da liberdade

O sol brilhava em um pula-pula inflável em formato de casa e as crianças brincavam com os dedos pegajosos no calor, rostos meio escondidos atrás de colunas de algodão doce. Três policiais do gabinete do xerife do condado de Franklin estavam de guarda, convocados por causa de rumores de planos para interromper o protesto, incluindo uma promessa de que os velhos do condado de Franklin voltariam a andar naquela noite.

Katosha Poindexter, 32 anos, Bridgette Craighead, 29 anos, eMalala Penn, 22 anos, tentam levar protestos do Black Lives Matter adiante emFranklin County Foto: The Washington Post by Heather Rousseau

As mulheres tiraram as ameaças de suas mentes. Eram 18h01. Hora de começar as comemorações do Juneteenth (também conhecida como o dia da liberdade, a data refere-se ao dia que os últimos escravos foram libertados). 

Bridgette levantou uma garrafa de plástico cheia de água marrom, remanescente de uma cerimônia que elas haviam realizado mais cedo naquele dia. Elas haviam entrado em um rio próximo, andando em volta de uma família branca em uma viagem de pesca, e invocado a bênção de seus ancestrais africanos - "visíveis e invisíveis", Bridgette havia dito, "conhecidos e desconhecidos" - jogando ofertas de frutas frescas na água.

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Agora, Bridgette tirava a tampa da garrafa. Malala pediu à multidão que se levantasse e dissesse os nomes daqueles que eles desejavam homenagear. 

“Martin Luther King!”, alguém disse, e Bridgette derramou uma gota do líquido escuro.

Rosa Parks! Outra gota. "Emmett Till!" Harriet Tubman! Bridgette sugeriu e pulou enquanto deixava a água passar por suas botas com estampa de oncinha.

Foi a primeira vez que Bridgette e Katosha comemoraram o Juneteenth. Ambas tiveram infâncias difíceis e recentemente voltaram para sua cidade natal para "tomar jeito", como Katosha disse. Mas nenhuma da duas tinha um emprego estável. Bridgette, que está na metade de seus estudos de cosmetologia, havia encontrado trabalho temporário cortando cabelo, até que o surto do novo coronavírus acabou com ele. 

Há vários meses, as primas viviam de suas economias, cheques de auxílio por conta da pandemia e pensão alimentícia. Depois de economizar o suficiente, elas esperavam abrir um salão de beleza. Ambas disseram que não aprenderam muito a respeito de história negra na escola. Mas, inspiradas pelos protestos após a morte de Floyd, estavam famintas por aprender.

Agora, em uma tarde de segunda-feira no fim de junho, elas se reuniam a dúzias de pessoas brancas, a maioria idosas: um punhado de fiéis de uma igreja das redondezas e integrantes dos democratas do Smith Mountain Lake. Embora a maioria do condado de Franklin seja republicana, a área do lago - com suas paisagens arborizadas e casas de luxo - tende a atrair aposentados de tendência liberal do norte.

Bridgette dançou ao som da música de um alto-falante portátil, suando um pouco os shorts com estampa de oncinha, a máscara facial com mesma estampa e uma camiseta com a inscrição “Legalize Being Black” (Legalize ser negro). "Ei, olha, não importa se vocês não sabem dançar", ela disse em seu megafone. "Se você sentir a música, deixe que ela conduza você!" 

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Ela, Katosha e Malala estavam animadas em ver os septuagenários, mas elas teriam ficado assim mesmo se ninguém tivesse aparecido. Na verdade, esse era o plano delas para os próximos meses: à medida que o entusiasmo diminuía, elas achavam que seus planos para manifestações contariam apenas com elas mesmas.

Elas e a oposição.

Aconteceu naquela segunda-feira como ocorria todas as vezes. Dedos do meio de pessoas brancas eram exibidos das janelas de carros que passavam. Um automóvel diminuiu a velocidade para que um homem branco pudesse fazer ameaças e Bridgette aumentou a música para evitar ouvi-las. Uma caminhonete vermelha ligou o motor e girou para perto do meio-fio, fazendo homens e mulheres perderem o equilíbrio.

Atrás de Bridgette, no drive-thru da lanchonete Wendy’s, um cliente branco se aproximou da janela (do carro) e mandou os funcionários chamarem a polícia. Outro alertava que os manifestantes poderiam ser “perigosos”.

"Por que eles estão protestando?" outro cliente branco perguntou.

"Igualdade racial", respondeu um funcionário da Wendy."s.

"Eles já têm", disse o homem, "o máximo que vão conseguir".

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Era impossível abafá-los completamente com a resposta favorita de Bridgette: "Nós amamos você!" Às vezes, as três mulheres sentiam medo. Foi quando Katosha pensou em sua casa alugada, com vazamentos de água e um buraco no teto. Ela disse a si mesma que tudo o que estava fazendo ajudaria a criar um mundo mais justo para seus filhos, para que eles não tivessem que criar suas famílias em um lugar como esse.

Bridgette lembrou de Bronsyn. Malala pensou nos filhos que ela talvez tivesse algum dia.

E todas pensaram: se elas não falassem no condado de Franklin, quem faria isso?

Outro homem branco em uma caminhonete preta que passava em frente à lanchonete mostrou seu dedo do meio estendido. Ele diminuiu a velocidade o suficiente para cuspir as palavras diretamente no rosto de Bridgette: "Vá se f**** !" Então ele acelerou novamente e ela correu atrás dele, gritando "eu te amo!" até que ela teve que parar, curvada e sem fôlego.

O homem entrou no estacionamento de uma farmácia, deu meia-volta e voltou. Assim que o semáforo ficou verde, ele começou a avançar, um borrão de metal preto e dedos brancos e longos e buzinas altas e raivosas.

Bridgette estava desmoronada, ofegando na grama. Ela se ajeitou, levantou o megafone e começou a correr atrás dele. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA E ROMINA CÁCIA

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