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Refugiados sofrem com exploração econômica

Após travessia, migrantes acabam em situação análoga à escravidão na Itália

Por Adriana Carranca , Cassibile e Itália
Atualização:

CASSIBILE, ITÁLIA - O sudanês Mustafa Said, de 29 anos, espera ansioso o período de colheita de tomates na Sicília, Itália. Sem ter onde morar, está acampado em uma lavoura cujo proprietário desconhece. Seu contato é um atravessador, a quem descreve como “dono” dos trabalhadores, que vivem em situação análoga à escravidão. A exploração de refugiados é a nova face da economia do Mediterrâneo. 

Há outra, ainda: a das ruas. O Estado encontrou dezenas de refugiados dormindo nas ruas e mendigando nos faróis de Catania, Palermo, Messina, Trapani, Siracusa, vítimas de políticas adotadas pela União Europeia no último ano, que jogaram milhares na clandestinidade.

MustafaSaid vive em acampamento sem eletricidade ou banheiro em lavoura italiana Foto: ADRIANA CARRANCA/ESTADÃO

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Said dorme em uma barraca de plástico que improvisou. Outros, ao relento, em colchões úmidos. Não há eletricidade, água potável ou coleta de esgoto no acampamento, improvisado pelos trabalhadores. O banheiro é a terra. Eles saem antes do amanhecer e só retornam depois de o sol se pôr. 

Na Europa de Said, as condições de vida são parecidas às do país de onde fugiu. “A diferença é que aqui não tem guerra, o resto é mais ou menos igual”, diz. “Se conseguisse trabalho contínuo, a vida melhorava. Porque na minha terra (uma pequena aldeia na fronteira entre o Sudão e o Sudão do Sul) isso também não tem.” 

A mãe de Said morreu, o pai e os irmãos mais jovens ficaram para trás – refugiar-se exige dinheiro. Somente ele e um irmão migraram, ambos estão nas mãos de intermediários que selecionam trabalhadores para as lavouras do sul da Itália. “Negros fortes, feito eu e meu irmão, têm mais chance, porque aguentam mais horas e carregam mais peso.” Nas raras vezes que conseguem juntar algum dinheiro, o enviam para a família. Said não tem coragem de dizer a eles que o sonho da Europa se tornou um pesadelo. 

“Essa é uma grande fonte de estresse psicológico para essas pessoas, porque os parentes acreditam que os que migraram estão melhor de vida e os pressionam para que enviem dinheiro. Muitas dessas famílias investiram tudo para mandar o filho para a Europa”, diz o padre Carlo Dantom, que abriga em sua igreja, em Siracusa, refugiados e migrantes excluídos do sistema de proteção italiano. Mais de 20 mil deles passaram pela casa que mantém com doações. 

A maioria dos que se sujeitam à exploração não tem documentos. Muitos tiveram o pedido de asilo recusado. A Oxfam (grupo de ONGs humanitárias) estima que mais de 5 mil migrantes receberam a carta de expulsão do governo italiano há um ano, quando a União Europeia adotou nova política de registro de migrantes e refugiados, na tentativa de excluir do sistema aqueles que buscam asilo por questões econômicas, embora isso contrarie leis internacionais.

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Veja abaixo: Assista trecho do documentário 'Quando Eu Era Você'

O documento determina que deixem o país em uma semana. Mesmo que quisessem voltar para casa, eles não têm dinheiro para isso. Mais de 90% caem na clandestinidade – e na teia de criminosos que lucram com o trabalho escravo e as ruas.

“A polícia, as autoridades, os empregadores, todos sabem que eles não têm papéis. Mas fazem vista grossa, porque a ilegalidade é uma forma de exercer controle sobre eles”, diz o padre Carlo. O trabalho na lavoura era antes exercido por italianos, o que obrigava os donos de terra a pagar a eles o mínimo previsto por lei e garantir moradia e alimentação. “O uso de ilegais barateou os custos da produção. São eles que hoje sustentam a agricultura mediterrânea.”

Said recebe pelo que colhe. A colheita do tomate, base da culinária italiana, é a que melhor paga: 6 euros por contêineres, no caso dos tomates pequenos, e 3 euros, dos maiores. Quem pesa é o “patrão” e Said não tem alternativa, a não ser confiar nele. Esses atravessadores protegem os donos de terra de processos por uso de trabalho escravo, embora seja improvável que um ilegal consiga ingressar com ação por direitos na Justiça. 

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Nas ruas. Hamza, de 26 anos, fugiu da Somália após um carro-bomba explodir na frente do pequeno comércio da família em Mogadíscio. O prédio caiu. Como muitos que fogem do Chifre da África, ele atravessou 9.675 km em ônibus, caminhões e a pé em uma jornada que se arrastou por 18 meses e passou por cinco países. Em cada parada, fazia bicos para custear o próximo trecho. 

Na Líbia, acabou em uma prisão em Gharyan, a cerca de 80 km de Trípoli, da qual escapou com outros 150 prisioneiros. Após a fuga, foi capturado novamente, dessa vez por contrabandistas. “Eles queriam US$ 3 mil por minha libertação. Se não conseguiam falar com minha família, me batiam até eu desmaiar.” Quando viram que a família não mandaria o dinheiro, eles o soltaram.

 

Hamza diz que seguiu sem destino até se esconder na boleia de um caminhão. Assim, chegou a uma fazenda. Trabalhou na lavoura por quatro meses e pagou a travessia de barco para a Sicília. Em Catania, fez bicos para pagar a viagem de ônibus a Munique, na Alemanha, onde ficou por dois anos.

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Há seis meses, foi colocado em um avião e deportado para Milão, com base na Convenção de Dublin. Hamza passou a viver nas ruas de Catania. Durante o dia, perambula pelas proximidades da estação de trem, onde contrabandistas costumam recrutar estrangeiros para a lavoura ou o mercado informal. Muitas mulheres acabam exploradas pela rede de prostituição. 

Para entender

A Convenção de Dublin, aprovada em 2013, prevê que pedidos de asilo só podem ser feitos nos países de chegada. Há um ano, a agência da União Europeia para controle de fronteiras (Frontex) passou a colher impressões digitais dos que chegam ainda nos portos. Isso tem mantido milhares na Itália, principal entrada dos que tentam chegar à Europa, após acordo da UE com a Turquia, que prevê a deportação dos que chegam pela Grécia de volta ao país. A nova política foi justificada sob a promessa de que pelo menos 160 mil deles seriam realocados no continente. Mas, até o primeiro semestre, pouco mais de 800 pessoas foram realocadas da Itália. Somente neste ano, mais de 112 mil pessoas chegaram ao país pelo mar.

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