Senado argentino veta proposta de legalização do aborto

Projeto que permitiria a interrupção da gravidez até a 14.ª semana de gestação foi rejeitado por 38 votos a 31; votação contou com duas abstenções e durou mais de 15 horas

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Por Luciana Rosa e Buenos Aires
Atualização:

BUENOS AIRES - O Senado argentino reprovou nesta quinta-feira, 9, por 38 votos a 31 o projeto de lei que previa a legalização do aborto e a permissão para interrupção da gravidez até a 14.ª semana de gestação. A votação, cuja discussão começou na manhã de quarta-feira e durou mais de 15 horas, contou com duas abstenções. Mais cedo, parlamentares opositores à medida anunciaram que já tinham os 37 votos suficientes para vetá-la. No Brasil, discussão passa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e não há prazos para a ministra Rosa Weber apresentar seu voto.

Para a Anistia Internacional, decisão "representa a perda de uma oportunidade histórica para o exercício dos direitos humanos das mulheres, meninas e pessoas com capacidade de gestar" Foto: Natacha Pisarenko / AP

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A proposta havia sido aprovada em junho na Câmara dos Deputados depois de meses de discussões que dividiram a Argentina. Após o veto do Senado, os partidários da legalização do aborto terão de esperar ao menos um ano para apresentar um novo projeto de lei.

A decisão foi recebida com alegria pelos manifestantes que se opunham à medida. "Esta votação nos permite reservar um tempo para refletir e fazer propostas superadoras e humanas para as mulheres vulneráveis. Não há vencedores ou vencidos", disse em tom conciliador Alberto Bochatey, arcebispo de La Plata e encarregado pela Conferência Episcopal para o diálogo com o Congresso sobre o tema.

Já a Anistia Internacional afirmou que a decisão "representa a perda de uma oportunidade histórica para o exercício dos direitos humanos das mulheres, meninas e pessoas com capacidade de gestar". 

Entre os defensores da legalização do aborto, a reação oscilou entre tristeza e raiva. Alguns lançaram pedras e atearam fogo em lixeiras, enquanto a polícia tentava dissipar as pessoas com jatos de água e bombas de gás lacrimongêneo. Sete foram presos nos incidentes, segundo a polícia.

Expectativa

Desde o início da votação, milhares de manifestantes se reuniram na praça em frente ao Congresso argentino para acompanhar a votação. Os lenços verdes, dos defensores da lei, eram maioria, mas o número de manifestantes crescia à noite no lado azul. Este setor era formado, em geral, por grupos religiosos, munidos de cruzes.

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Carolina Diebel, de 39 anos, advogada, militante feminista há aproximadamente quatro anos, alugou o apartamento onde viveu Juana Manso – escritora e uma das precursoras do feminismo na América do Sul – para acompanhar a votação com 24 amigas.

Aos 25 anos, ela fez um aborto em uma clínica clandestina na localidade de San Martín, Província de Buenos Aires, durante a qual esteve entre a vida e a morte em decorrência de uma raspagem mal feita. "Seria muito chamar este lugar de clínica. Era um quarto frio, com teto de chapa e uma maca, um médico e uma anestesista. Me trataram muito mal, sem considerar o momento delicado pelo qual eu estava passando e os R$ 1.500 (este valor ronda hoje os R$ 5.500) que estava pagando", diz a advogada. 

Carolina Diebel, advogada militante feminista Foto: Luciana Rosa / Estadao

Foram três visitas à clínica de San Martín, até que Carolina fosse enviada a um hospital público. "O médico disse que eu sangraria por um ou dois dias. Eu comecei a me sentir bem e fui trabalhar. Aí comecei a sentir dor nas pernas, quase não podia caminhar. Minha mãe me acompanhou novamente à clínica, onde me fizeram uma raspagem sem anestesia. Não lembro de ter sentido uma dor pior do que essa em toda minha vida", relata. 

Carolina voltou a sentir dores abdominais e finalmente, com um quadro de febre alta, foi encaminhada pelo médico que realizou o aborto a um hospital. "Lembro que neste momento o médico me aconselhou a não mencionar a palavra aborto no hospital, para não correr o risco de ser maltratada", recorda. 

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Do lado celeste estava Karina Etchepare, de 40 anos, também advogada, adotada aos poucos meses de vida. Sua mãe biológica engravidou aos 14 anos após ser violentada pelo padrasto. "Minha avó, que era cúmplice dessa situação para que ninguém ficasse sabendo dos abusos, queria que minha mãe abortasse. Mas ela resistiu, me teve e aos 22 dias de vida me deu em adoção para que eu não terminasse na mesma situação dela", conta a militante que se considera "pró-vida".

Karina diz que não guarda rancor da mãe por ter sido dada em adoção e tentou reencontrá-la. No entanto, a mulher que lhe deu à luz já havia morrido. "Eu tive apenas a oportunidade de conhecer meus dois irmãos biológicos", relata a militante. 

Karina Etchepare (C), advogada contrária ao aborto Foto: Luciana Rosa / Estadão

"Ao escutar um testemunho parecido à minha história no Congresso, tomei a decisão. Mas alertei meu companheiro para o fato de que nossa intimidade ficaria bastante exposta", explica. Com a aprovação do marido, Karina resolveu contar sua história em uma das moções de discussão na lei e à várias mídias locais. 

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Em março, durante a abertura do ano legislativo, o presidente Mauricio Macri declarou: "Há 35 anos estamos adiando um debate muito sensível que devemos ter como sociedade: o aborto". Apesar de ser contrário à prática, ele disse apoiar a inclusão do tema em sua agenda de 2018. 

Veja os confrontos na Argentina após o veto ao projeto de legalização do aborto

O principal objetivo é reduzir as taxas de mulheres hospitalizadas por complicações em decorrência de abortos clandestinos: em 2017 foram cerca de 10 mil, com 63 mortes. O projeto já foi apresentado e rejeitado no Congresso 6 vezes ao longo de 11 anos. Esta foi a primeira vez que o projeto chegou a votação. / Com AFP

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