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Suprema Corte mais diversa que já existiu encara a pauta das ações afirmativas

Dois juízes negros, uma juíza latina e um bloco conservador em ascensão começam a julgar políticas afirmativas para entrada em faculdades, questão que fragmentou tribunais anteriores

Por Robert Barnes

O grupo mais diversificado de juízes da história da Suprema Corte dos Estados Unidos se reunirá nesta segunda-feira, 31, para enfrentar a questão que perturbou e dividiu profundamente tribunais anteriores: as ações afirmativas nas admissões de faculdades reconhecem e fortalecem uma nação multicultural, ou, em um gesto inadmissível, divide os americanos por raça?

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A autoridade dos reitores de faculdades de usar a raça de maneira limitada para construir um corpo discente mais diversificado quase não sobreviveu aos desafios anteriores. Mas mesmo uma defensora de tais políticas, a juíza Sandra Day O’Connor, escreveu em 2003 que as preferências raciais provavelmente não seriam necessárias em 25 anos. E agora há na corte uma maioria conservadora mais dominante.

Será a primeira análise de decisões passadas por uma Suprema Corte em que os homens brancos não são a maioria. A corte passou por uma reviravolta quase completa desde a previsão de O’Connor e tem juízes que dizem que os programas de ação afirmativa moldaram suas vidas.

Imagem mostra protesto a favor das ações afirmativas no ensino superior diante da Suprema Corte dos EUA nesta segunda-feira, 31. Corte debate assunto em dois casos Foto: Chip Somodevilla / AFP

O tribunal agora tem dois integrantes negros – e eles parecem ter visões opostas sobre se a Constituição autoriza políticas afirmativas com base na raça. O integrante mais antigo do tribunal, o juiz Clarence Thomas, é um oponente declarado das ações afirmativas: “O paternalismo racial é tão venenoso e pernicioso quanto qualquer outra forma de discriminação”, escreveu ele.

Ketanji Brown Jackson, a mais nova integrante do tribunal e sua primeira juíza negra, assumiu posição logo em seu segundo dia de tribunal: não há razão para acreditar que a Constituição proíba políticas de conscientização racial.

Sonia Sotomayor, a primeira juíza latina do tribunal, é a defensora mais ousada do que ela prefere chamar de políticas de admissão “sensíveis à raça”. Ela se descreveu como “um exemplo perfeito das ações afirmativas” – alguém que não teria sido transportada dos conjuntos habitacionais do Bronx para a Ivy League sem um empurrão – mas que se destacou como uma das melhores alunas quando chegou lá.

E há também o juiz John G. Roberts Jr., que geralmente é o conservador menos propenso a defender mudanças dramáticas nos precedentes do tribunal. Mas toda a sua carreira jurídica é ancorada por um profundo ceticismo em relação ao que ele chamou de “esse negócio sórdido” de dividir os americanos por raça.

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Adicione à mistura o fato de que cinco dos nove juízes ainda não votaram em casos de ação afirmativa na Suprema Corte.

Se existe um curinga entre eles talvez seja o juiz conservador Brett M. Kavanaugh, membro que muitos consideram fundamental para o direcionamento da corte.

O histórico de Kavanaugh como advogado e juiz sugere uma aversão às classificações raciais. Mas ele também demonstrou buscar a diversidade nos funcionários que contratou, com repetidos contatos com organizações estudantis negras das faculdades de direito de elite do país. Seu primeiro grupo de assistentes jurídicos na Suprema Corte também foi o primeiro a ser totalmente feminino.

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Na segunda-feira, o tribunal analisará as políticas de admissão em Harvard e na Universidade da Carolina do Norte (UNC), casos trazidos por Edward Blum e sua organização Students for Fair Admissions. Após extensos julgamentos, tribunais inferiores concluíram que as universidades cumpriam os precedentes da Suprema Corte sobre considerar a raça como apenas um dos fatores na construção de corpos estudantis mais diversos.

Dadas essas decisões – e apenas seis anos depois que a Suprema Corte aprovou um programa de admissão semelhante na Universidade do Texas –, analistas dizem que parece provável que a ala direitista do tribunal tenha aceitado os novos casos para redefinir a lei sobre raça, em vez de simplesmente corroborar os tribunais inferiores.

Membros da Suprema Corta dos EUA em imagem de 7 de outubro deste ano, em Washington Foto: J. Scott Applewhite / AP

A Suprema Corte “vem lidando com essa questão das ações afirmativas no ensino superior e dos usos permitidos da raça por muitos anos, mas a corte está mais conservadora agora do que em qualquer uma dessas décadas”, disse Roman Martinez, advogado que é presença constante na Suprema Corte.

Os oponentes com certeza serão liderados por Thomas, que era dissidente em 2003, quando a corte confirmou o uso limitado da raça em Grutter vs. Bollinger. Naquela época, O’Connor concordou com a Faculdade de Direito da Universidade de Michigan que suas políticas de admissão refletiam um interesse convincente para garantir uma “massa crítica” de estudantes de minorias. A Constituição “não proíbe o uso estritamente adaptado da raça pela faculdade de direito nas decisões de admissão para promover um interesse em obter os benefícios educacionais que fluem de um corpo discente mais diverso”, escreveu ela.

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A oposição de Thomas tem sido tanto pessoal quanto constitucional. “A Constituição abomina classificações raciais, não apenas porque essas classificações podem prejudicar as raças favorecidas ou se basearem em motivos ilegítimos, mas também porque toda vez que o governo coloca cidadãos em registros raciais e torna a raça relevante para a provisão de ônus ou benefícios, humilha a todos nós”, escreveu ele em discordância.

O juiz alega que se guia por uma visão “daltônica” da Constituição e que seriam permitidas apenas medidas governamentais que remediassem discriminação passada específica. Mas Corey Robin, professor de ciência política do Brooklyn College que escreveu The Enigma of Clarence Thomas, diz que Thomas ainda é “um pensador muito consciente em questões de raça”.

“Thomas sempre se viu, desde o início, como alguém que está tentando reconstruir como os negros pensam a raça”, disse Robin.

Quando Thomas escreve sobre ação afirmativa, ele “quase nunca foca ou fala sobre vítimas brancas. Na mente de Thomas, as verdadeiras vítimas da ação afirmativa são os negros”, continuou Robin. “Acho que ele é bastante sincero nessa crença de que a ação afirmativa é uma espécie de continuação de Jim Crow e da velha supremacia branca”.

Acho que ele é bastante sincero nessa crença de que a ação afirmativa é uma espécie de continuação de Jim Crow e da velha supremacia branca

Corey Robin, professor de ciência política do Brooklyn College

Thomas escreveu dramaticamente sobre como as preferências raciais afetaram sua própria vida. “Um diploma de direito de Yale significava uma coisa para os formados brancos e outra para os negros”, diz ele em seu livro de memórias My Grandfather’s Son. Após a formatura, “como símbolo de minha desilusão, tirei um adesivo de preço no valor de quinze centavos de um pacote de charutos e o colei na moldura do meu diploma de direito para me lembrar do erro que cometi ao estudar em Yale”.

O foco de Thomas nos negros como vítimas das ações afirmativas não convenceu os ativistas e defensores tradicionais dos direitos civis. “Ele teve todas as vantagens das ações afirmativas e foi contra elas”, disse Rosa Parks sobre Thomas em 1996.

Jackson, a mais nova integrante do tribunal, descreveu uma desconexão semelhante quando conheceu Thomas. Como assessora do juiz Stephen G. Breyer em 1999-2000, ela e outros funcionários foram convidados para almoçar com Thomas, uma tradição do tribunal para que cada assessor tenha um encontro com cada juiz.

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Jackson descreveu a experiência para os jornalistas Kevin Merida e Michael Fletcher em seu livro de 2007, Supreme Discomfort: The Divided Soul of Clarence Thomas.

Thomas “falava a língua”, disse Jackson, o que significa que ele a lembrou dos homens negros que ela conhecia, escreveram Merida e Fletcher.

“Mas fiquei lá o tempo todo pensando: ‘Não entendo você. Você soa como meus pais. Você soa como as pessoas com quem eu cresci”. Mas as lições que ele tendia a tirar das experiências do Sul segregado pareciam ser diferentes das de todo mundo que eu conheço”, o livro cita Jackson.

Jackson, nomeada pelo presidente Biden para substituir Breyer, logo deixou claro seus pontos de vista sobre as políticas raciais, dizendo, em um caso eleitoral do Alabama no início deste mês, que não havia razão para acreditar que a cláusula de igualdade de proteção da 14ª Emenda significava que a Constituição devesse ser daltônica.

“Acho que não podemos supor que a raça, quando levada em consideração, crie necessariamente um problema para a igualdade de proteção”, disse Jackson. “Olhamos para a história e as tradições da Constituição, para o que os formuladores e os fundadores pensaram. E, quando me aprofundei nesse nível de análise, ficou claro para mim que os próprios autores adotaram a cláusula de proteção igualitária, a 14ª Emenda, a 15ª Emenda, com uma consciência sobre a raça”.

Ela acrescentou: “Todo o objetivo da [14ª] Emenda era garantir os direitos dos ex-escravizados libertos”. Sotomayor, que ingressou no tribunal em 2009, fez defesas semelhantes.

“Políticas de admissão sensíveis à raça constitucionalmente permitidas podem tanto servir ao interesse de obter os benefícios educacionais que fluem de um corpo discente mais diverso quanto beneficiar as minorias raciais”, escreveu ela em uma discordância à decisão do tribunal de que os eleitores de Michigan poderiam proibir o sistema universitário de considerar a raça nas decisões de admissão. “Não há nada mutuamente exclusivo entre uma coisa e outra”.

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Além disso, Sotomayor escreveu sobre o que significa fazer parte de uma minoria nos Estados Unidos. “A raça é importante por razões que estão realmente à flor da pele, que não podem ser discutidas de outra maneira e que não podem ser descartadas”, escreveu ela. “A raça é importante para a visão da sociedade de um jovem que vive a adolescência vendo as pessoas ficando tensas quando ele passa, não importa o bairro onde ele cresceu. A raça importa para o senso de identidade de uma jovem quando ela revela sua cidade natal e, em seguida, é pressionada: “Não, de onde você é de verdade?”, independentemente de quantas gerações sua família já viveram no país (...). As risadinhas, os julgamentos silenciosos que reforçam o mais paralisante dos pensamentos: ‘Eu não pertenço a este lugar’”.

Sobre essa questão, Sotomayor discordou de Roberts. Ele é um dos maiores defensores da visão daltônica e disse que esta é a lição da decisão histórica do tribunal que acabou com a segregação nas escolas públicas, Brown vs. Conselho de Educação, de 1954. O juiz discordou quando o tribunal manteve as políticas de admissão sensíveis à raça na Universidade do Texas em 2016 e redigiu a decisão para derrubar os planos de dessegregação voluntária em Seattle e Louisville em 2007. Ele disse que o uso da raça nas tarefas dos alunos não era permitido, mesmo que as autoridades educacionais achassem que tinham uma razão nobre.

“A maneira de parar a discriminação racial é parar de discriminar com base na raça” foi uma de suas frases mais citadas.

O ceticismo em relação às políticas sensíveis à raça tem sido uma linha transversal na carreira de Roberts, desde seu tempo como jovem advogado no governo Reagan até seu parecer sobre a Lei de Direitos de Voto, destinada a remediar discriminações do passado.

Uma questão-chave é se esses pontos de vista superarão a tendência de Roberts de tentar encontrar um meio-termo em questões jurídicas polarizadoras. Os advogados de Harvard e UNC pedem que o tribunal não apenas reescreva suas regras sobre raça, mas também anule a decisão de O’Connor em Grutter vs. Bollinger.

A tendência de Roberts para a conciliação ficou evidente nos últimos meses, quando ele se recusou a se juntar a seus colegas conservadores para derrubar Roe vs. Wade. As opções nos casos das ações afirmativas incluem contornar as questões constitucionais e decidir que a lei federal proíbe a consideração de raça – o que deixaria o Congresso livre para fazer uma mudança – ou simplesmente decidir que as políticas de Harvard e UNC violam a jurisprudência do tribunal.

Mas as decisões anteriores de Roberts podem indicar que esta é uma questão na qual ele não buscaria um caminho conciliatório. “Este caso pode desafiar sua forte aversão a derrubar os precedentes”, disse Martinez, que é ex-assessor de Roberts. “Talvez tome a liderança do tribunal desta vez”.

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Como os tribunais inferiores confirmaram as políticas da UNC e Harvard, parece provável que o apoio para abordar os casos tenha vindo de um ou mais dos indicados do presidente Trump para o tribunal: os juízes Neil M. Gorsuch, Amy Coney Barrett e Kavanaugh.

Kavanaugh, que ingressou no tribunal em 2018, esteve com a maioria mais do que qualquer outro juiz nos últimos dois mandatos. Seus casos como advogado e decisões como juiz do tribunal de apelações sugerem uma aversão às classificações raciais.

Mas, mesmo ao aprovar uma lei de identificação eleitoral da Carolina do Sul que os advogados da apelação disseram ter um efeito desproporcional sobre os eleitores negros, Kavanaugh escreveu que “a longa marcha pela igualdade para os afro-americanos ainda não terminou”.

Além disso, Kavanaugh deu importância à contratação de minorias, que estão sub-representadas entre os advogados dos prestigiosos tribunais federais de apelação. Durante seu tempo no Tribunal de Apelações dos Estados Unidos para o Circuito de Washington DC, 13 dos 48 funcionários que ele contratou pertenciam a minorias. Nove deles vieram a ser assessores da Suprema Corte, segundo estatísticas compiladas por seus ex-assessores.

Apenas três de seus vinte assessores na Suprema Corte eram homens brancos.

Justin Driver, professor de direito constitucional em Yale que foi assistente de O’Connor e Breyer, disse que o tribunal defendeu políticas de consciência racial no passado com “dentes cerrados”.

“As ações afirmativas foram deixadas para morrer seguidas vezes, mas uma série de juízes bastante improváveis nomeados pelos republicanos a preservaram”, disse ele. “Vamos ver se a história se repete”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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