Xi rompeu o contrato social que ajudava a China a prosperar; leia o cenário

Chegada de Xi Jinping ao poder em 2013 provocou mudanças na política chinesa com aumento da repressão e do poder econômico estatal

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Por Yasheng Huang*
Atualização:

Os protestos na China contra os draconianos controles anticovid do governo têm sido comparados aos de 1989, quando estudantes se manifestaram por reformas políticas e democracia. O movimento pró-democracia de 1989 ocorreu durante o período mais liberal politicamente, tolerante e iluminado na história da República Popular da China, e o regime abriu fogo na Praça Tiananmen — após a espoliação do líder liberal Zhao Ziyang — porque exauriu-se de qualquer outra ferramenta de controle ao seu dispor. Trata-se do paradoxo de Tocqueville: quanto menos autocrática, mais vulnerável é a autocracia.

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Mas uma analogia mais próxima é o 5 de abril de 1976. Naquela data e seus dias imediatamente anteriores, manifestantes se reuniram na Praça Tiananmen protestando contra o governo tirânico, as condições econômicas em deterioração e a perseguição política da Gangue dos Quatro — e subsequentemente contra seu patrono, Mao Tsé-tung. Foi um movimento nascido de mágoas, não aspirações.

Os protestos da covid ocorrem no auge do momento autocrático da China. Ainda que haja chamados por liberdade de expressão e eleições, o grito dos manifestantes desde o domingo tem sido contra uma opressão intensa: o encarceramento de centenas de milhões de pessoas em suas residências e hospitais de campanha. Autocracias — seja na China ou em outras partes — são opressivas, mas algum outro regime autocrático já retirou direitos de tantas pessoas para controlar a vida cotidiana?

Estudantes seguram folhas de papel em branco durante protesto contra a política de covid zero em Hong Kong, no dia 29 de novembro Foto: Jerome Favre / EFE

Politicamente, o líder máximo da China, Xi Jinping, violou uma técnica testada pelo tempo que seus antecessores usaram para dissipar tensões sociais: divisão e conquista. Depois de 1989, a maioria dos protestos dos chineses foram localizados e sobre questões específicas. Moradores de zonas rurais perderam suas terras, mas urbanidades receberam torrentes de benefícios. Funcionários do Estado perderam seus empregos, mas empreendedores privados foram cortejados para abrir negócios.

Benefícios e perdas se equivaleram no fim. Diferentes pessoas albergaram diferentes mágoas, e suas mágoas não foram sincronizadas. O Partido Comunista não apenas sobreviveu a esses protestos esparsos, mas cresceu e prosperou. Hoje o partido tem cerca de 96 milhões de membros. Se fosse um país, seria o 16.º maior do mundo.

Agora considere a política covid-zero da China. Seus lockdowns colocaram quase todos exatamente na mesma situação, e de acordo com uma estimativa, quase 400 milhões de pessoas foram colocadas sob algum tipo de controle em 2022. Os afluentes cidadãos de Xangai têm muito pouco em comum com os moradores de Urumqi, em Xinjiang. Mas quando dez pessoas morreram em um alto edifício de Urumqi, cujas portas alegadamente tinham sido trancadas por causa das restrições anticovid, empatia, um ingrediente crucial para ações coletivas, irrompeu entre os cidadãos de Xangai que vivem em altos edifícios parecidos com aquele. Nunca, nem mesmo em 1989, o regime chinês confrontou protestos em várias cidades ao mesmo tempo.

O estilo autocrático de Xi tem minado os interesses institucionais do Partido Comunista Chinês. Depois do episódio na Praça Tiananmen, os líderes chineses descobriram uma fórmula bem-sucedida para preservar o governo monopartidário, que favoreceu crescimento, arquitetou inovações e semeou empreendimentos de sucesso. Essa fórmula exigiu dos cidadãos chineses lealdade, mas também lhes deu espaço.

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Jovens podiam ir a karaokês, shows de rock e idolatrar qualquer astro do K-pop que lhes apetecesse. Intelectuais podiam expressar fúria e frustração na vibrante rede social chinesa. E os empreendedores estavam tão ocupados ganhando dinheiro que não tinham tempo para soletrar a palavra “política”. Esse contrato social, segundo o qual o Partido Comunista respeitava certos limites contanto que a sociedade fizesse o mesmo, foi decisivo para afastar a China da beira do desastre da crise da Praça Tiananmen e contribuiu para o crescimento econômico e a prosperidade. Gostemos — nós, no Ocidente — ou não, pesquisas de opinião realizadas nesses anos mostraram que os jovens na China apoiavam mais a agenda política nacionalista do governo do que os chineses mais velhos.

Xi rompeu esse contrato social. A partir de 2013, seu governo começou a destinar créditos bancários para empresas estatais cronicamente ineficientes em detrimento do setor privado. E então seu governo começou a reprimir organizações não governamentais, como grupos feministas, e advogados que ajudavam trabalhadores migrantes de origem rural a negociar melhores salários. Nem os ambientalistas foram poupados, apesar de uma das prioridades de Xi ter sido combater a poluição na China. A censura foi intensificada significativamente nas redes sociais e nas universidades chinesas. Em 2020 e 2021, seu governo começou a mirar — por meio de multas e restrições regulatórias — joias chinesas da tecnologia e do empreendedorismo: Alibaba, Tencent, Baidu e muitas outras empresas.

Presidente chinês Xi Jinping durante reunião na Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC) em Bangkok, na Tailândia, em imagem do dia 19 de novembro Foto: Athit Pewawongmetha/Reuters

O ataque contra grandes corporações da indústria da tecnologia foi contraproducente. O setor privado na China gerava receita de impostos e apreciações imobiliárias que financiavam o Partido Comunista e suas muitas e custosas operações — incluindo, sim, seus testes obrigatórios para detecção de covid. As empresas de alta tecnologia chinesas contribuíram criticamente para o sucesso preliminar da China em conter o coronavírus, introduzindo regras sanitárias em velocidade recorde. Elas também criaram milhões de empregos para os jovens chineses, e os empreendedores que as dirigiam se tornaram exemplos para chineses mais ambiciosos empreenderem — em vez de se angustiar com direitos humanos ou livre-expressão. O Partido Comunista teve o melhor dos dois mundos: um setor privado que fazia o PIB crescer, conforme demonstrou a pesquisa acadêmica, não requeria abertura política.

A política covid-zero é outro exemplo de uma ferida autoinfligida. Em 2020, o governo de Xi alcançou uma vitória preliminar ao colocar a cidade de Wuhan em lockdown e rapidamente achatar a curva de infecções. Em vez de usar a janela de oportunidade em 2020 e 2021 para vacinar sua população com todas as vacinas disponíveis, incluindo Pfizer e Moderna, o governo chinês dobrou a aposta na política covid-zero contra a altamente transmissível variante Ômicron. Foi um esforço fadado ao fracasso, porque, conforme coloca o epidemiologista Michael Osterholm, isso é como “tentar parar o vento”.

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A decisão de Xi desvelou o mais elevado grau da arrogância — um líder arriscando sua reputação em uma missão impossível. Enquanto os lockdowns trouxeram sofrimento incalculável, as novas infecções pelo coronavírus atingiram alta recorde, de aproximadamente 30 mil ao dia em uma contagem recente. Ele prometeu demais e, previsivelmente, entregou menos do que o esperado.

Mas inadvertidamente Xi facilitou a coisa para a democracia em seu país. Quando estudantes levantaram folhas de papel em branco em protestos, eles não estavam pensando em defender direitos dos que expressam visões impopulares, dissidentes; eles estavam defendendo o direito de ser humanos — de dar uma caminhada no parque, almoçar em um restaurante ou visitar amigos para jogar.

Os cidadãos chineses só querem suas vidas de volta, argumento que John Stuart Mill jamais pensou na defesa da livre-expressão. Se for este o campo em que o debate sobre democracia e autocracia ocorrer, a democracia vencerá toda vez — e temos de agradecer Xi por isso. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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*Yasheng Huang é professor de economia global e administração na Faculdade Sloan de Administração, do MIT, e autor de “Capitalism With Chinese Characteristics” e “The Rise and the Fall of the EAST: Examination, Autocracy, Stability, and Technology in Chinese History and Today”, que será publicado em 2023.

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