Mulheres profissionais temem a perda de direitos se Taleban voltar ao poder no Afeganistão

Milhares de afegãs ingressaram em empregos e no serviço público desde que a invasão americana derrubou os taleban e acabou com a rigidez que as confinava em casa

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Por David Zucchino e Fatima Faizi
Atualização:

KABUL, AFEGANISTÃO – Quando Gaisu Yari tinha 6 anos, foi prometida ao filho de um comandante pró-Taleban, também com a mesma idade, no leste do Afeganistão. Depois de completar 18 anos, Yari contou que escapou do compromisso forçado e fugiu para os Estados Unidos com a ajuda de soldados americanos.

Regressou ao Afeganistão há cinco anos com um mestrado da Universidade de Columbia e agora trabalha como comissária no serviço público. Mas Yari, de 32 anos, teme que sua posição de destaque – e todas as suas realizações – possam ser anuladas se o Taleban voltar ao poder com a assinatura do acordo que deu início à retirada das tropas americanas do país.

No sentido horário: Raihana Azad, Hasiba Ebrahimi, Nargiss Hurakhsh e Gaisu Yari. Foto: Kiana Hayeri/The New York Times

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Para as mulheres que trabalham, cujas posições mal existiam no governo do Taleban, a possível volta dos extremistas é particularmente alarmante. Milhares de afegãs ingressaram em empregos e no serviço público nos quase 19 anos desde que a invasão americana derrubou os taleban e acabou com a rigidez que as confinava em casa e as punia brutalmente por eventuais violações. O acordo de paz prevê negociações entre os afegãos que devolveriam o poder político ao Taleban em um governo no pós-guerra.

O vice-líder taleban disse que “os direitos concedidos às mulheres pelo Islã” serão respeitados. Mas este mesmo princípio era citado durante o cruel governo do Taleban. Apenas quatro dos 21 integrantes da equipe de negociações do governo afegão são mulheres. Uma negociadora, Fawzia Koofi, sobreviveu a uma tentativa de assassinato por desconhecidos em Cabul, no dia 14 de agosto. Yari e três outras mulheres falaram ao jornal The New York Times sobre as suas preocupações. Todas temem a volta do Taleban, pois já lutam para viver numa sociedade patriarcal profundamente hostil à igualdade de direitos para as mulheres.

Gaisu Yari, uma autoridade em matéria de direitos

Gaisu Yari écomissária do serviço público do governo, em Cabul. Foto: Kiana Hayeri/The New York Times

Quando ela viu o primeiro noticiário da TV sobre o acordo de paz, pensou imediatamente no pai. O mesmo comandante taleban que o forçara a concordar com a noivado de Yari com seu filho, depois pediu a irmã mais velha de Gaisu em casamento. Quando seu pai recusou, foi sequestrado em 2000 e nunca mais ouviram falar dele. O destino do pai é um lembrete de tudo o que sua filha conquistou, disse Yari, e como é comum ainda as mulheres afegãs serem tratadas como propriedades. “O ambiente aqui no Afeganistão ainda não vê de bons olhos as mulheres, para dizer o mínimo”, afirmou.

Mesmo em Cabul, a capital, as que não cobrem totalmente os cabelos ou aparecem em público com um homem que não seja da família, às vezes são xingadas ou atacadas pelos homens. Os casamentos entre crianças são comuns nas áreas rurais. Centenas de milhares de meninas afegãs não vão à escola. Yari tem um emprego de destaque. Ela analisa os casos relativos aos direitos humanos e aos direitos civis apresentados por funcionárias do governo, que tem o apoio dos EUA em Cabul.

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Trata-se de uma posição que seria inconcebível para uma mulher sob o governo taleban, mas não é nenhuma garantia contra o assédio ou julgamentos cruéis, segundo Yari. “Quando eu estava tentando escapar de um casamento entre crianças, não senti tanto estresse quanto agora”, afirmou. “Ainda sinto pressões em vários níveis. Uso maquiagem? Uso o véu? Uso roupas apertadas ou largas?”

Depois que ela regressou ao Afeganistão, em 2015, disse Yari, ficou com medo de ser castigada pelo comandante e pelo noivo que ela rejeitara. Preferiu distanciar-se das redes sociais e recusou entrevistas até que soube que os dois homens haviam sido assassinados por uma facção rival. Agora ela fala abertamente de sua jornada, desde o casamento arranjado em criança, à mulher que tem uma profissão. “Sou uma sobrevivente”, declarou. “Percorri um longo caminho para chegar aonde estou agora. Eu me recuso a voltar atrás”.

Hasiba Ebrahimi, atriz

No Afeganistão, um dos termos usados para definir uma atriz é prostituta. “A melhor maneira para dizer que uma mulher é má ou imoral é chamá-la de atriz”, afirmou Hasiba Ebrahimi, que desafiou os costumes sociais e a própria família para trabalhar como atriz em dramas de TV em Cabul. Hasiba, de 24 anos, contou que foi insultada na rua e difamada nas redes sociais por causa de sua carreira. Os afegãos postaram “Xs” vermelhos sobre o rosto dela na sua página do Facebook.

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Ela foi chamada em sentido depreciativo “a moça do filme”. Trabalhar como atriz era inimaginável sob o Taleban, que não permitia que as mulheres saíssem de casa sem acompanhante. Mas quase vinte anos depois que os extremistas foram derrubados do poder, as atrizes como ela continuam lutando para acabar com a imagem de mulheres dissolutas. A sua carreira ainda põe a vida de uma mulher em risco.

No dia 25 de agosto, a atriz Saba Sahar, de 46 anos, afegã famosa e batalhadora em defesa dos direitos das mulheres, que também trabalha como policial destinada aos assuntos de gênero, foi ferida em uma tentativa de assassinato em Cabul em que também se feriu seu motorista e guarda-costas. Hasiba disse que levou anos para a família aceitar a sua profissão. Sua mãe inventava uma história quando as vizinhas perguntavam a respeito das frequentes ausências da filha.

Uma prima ameaçou denunciá-la ao Taleban se continuasse trabalhando como atriz. Agora, com a possibilidade do retorno do Taleban, Hasiba teme o pior, e disse que estuda a possibilidade de fugir do país. “Não quero ter de lutar contra o Taleban”, afirmou. “Eu já tenho que lutar com a minha família e com a sociedade. Não posso enfrentar outras batalhas”.

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Raihana Azad, política

Raihana Azad é membro do parlamento do Afeganistão. Foto: Kiana Hayeri/The New York Times

Quando Raihana Azad concorreu a uma cadeira no Parlamento afegão, não teve o apoio dos membros de sua própria família. Na realidade, eles se declararam publicamente contra ela. Raihana, mãe de dois filhos que foi obrigada a casar aos 13 anos, cometeu um grave pecado, segundo a família.

Divorciou do marido dez anos depois do casamento. É raro no Afeganistão uma mulher pedir o divórcio, e isto se torna uma vergonha para a família da mulher. Aos 37 anos, ela conseguiu uma cadeira no Parlamento obtendo a maioria dos votos no seu distrito, no leste do Afeganistão, em lugar de ser indicada por um sistema de cotas que reserva algumas cadeiras para as mulheres. Alguns membros do Parlamento, homens, contestaram sua vitória.

Um parlamentar do oeste do Afeganistão a chamou de prostituta e espiã do estrangeiro. Falou que ela havia desrespeitado o Islã divorciando do marido. Para Azad, as acusações foram o lembrete de que a vida das mulheres poderá tornar-se ainda mais precária se o Taleban retornar ao governo. Segundo ela, ao negociar o acordo de paz, os EUA abandonaram tudo o que as mulheres conquistaram desde 2001.

“Os americanos não ligam para os direitos das mulheres afegãs”, afirmou. “Este acordo foi feito a portas fechadas; as mulheres afegãs não puderam participar dele”. Como membro do Parlamento, afirmou, ela tenta ser um exemplo de mulher moderna disposta a desafiar a cultura e as tradições afegãs. “Eu sou contra esta cultura, não só por mim, mas pela próxima geração de jovens mulheres,” disse. “Quero que minhas netas sintam que são seres humanos”.

Nargiss Hurakhsh, jornalista

Depois que Nargiss Hurakhsh, jornalista da televisão, noticiou os detalhes do acordo de paz dos EUA com o Taleban, concluiu que os americanos haviam abandonado o Afeganistão. “Eles não estão mais interessados neste país”, afirmou. “Os americanos querem sair do Afeganistão a todo custo. E nem eles nem o Taleban se preocupam com as mulheres afegãs”.

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Para o pequeno grupo de profissionais femininas do país, ela diz, o acordo de paz marcou o começo de um período de lutas para manter e ampliar direitos conquistados a duras penas, e ao mesmo tempo, elas se defrontam com o possível retorno do Taleban que provavelmente os negará. “Somos um pequeno grupo da sociedade,” disse Nargiss Hurakhsh. “Vivemos uma vida diferente - enfrentamos desafios diferentes a cada dia”.

Ela valoriza extremamente sua possibilidade de fazer reportagens independentes e de entrevistar homens desafiando os costumes afegãos que desencorajam o contato masculino com mulheres solteiras. Ela realizou alguma coisa que se aproxima da igualdade com seus colegas homens, afirmou. E se pergunta até quando isto irá durar se o Taleban voltar ao poder. Nargiss, de 23 anos, tem seis irmãos.

Ela contou que sua mãe, que fez um casamento arranjado aos 14 anos, não pôde frequentar a escola na era do Taleban. Nargiss estudou ciências políticas na universidade e garantiu o seu emprego de repórter da TV em uma época em que a ajuda americana e de outros doadores ocidentais pressionava os empregadores a contratar mulheres.

A parte mais dolorosa do seu emprego, contou, foi a cobertura dos bombardeios do Taleban e dos ataques suicidas que visavam civis. Ela visitou famílias de vítimas e lamentou com elas a morte dos entres queridos. Foi uma experiência que transformou a sua vida. “Depois de cada ataque, eu me sinto mais velha”, falou. “Tenho apenas 23 anos, mas às vezes me sinto como se tivesse vivido mais de 50”. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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