Romance floresce entre revolucionários sudaneses após queda de ditador

Após Omar Hassan al-Bashir deixar o comando do país, jovens estão desfrutando de liberdades inéditas 

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Por Declan Walsh
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CARTUM, SUDÃO - A minivan acelerava pela margem do Nilo, costurando entre o tráfego do fim do dia. A noiva estava sentada no banco da frente, usando um vestido rosa, com uma bolsa reluzente no colo e os pés envoltos em curativos. A noiva, Samar Alnour, levou dois tiros no mês passado durante o levante que derrubou o antigo ditador do Sudão, Omar Hassan al-Bashir. Agora ela estava voltando ao local do protesto para se casar com o homem que a salvou.

O ajudante de obras Muntassir Altigani, 30 anos, correu em auxílio de Samar quando ela estava caída na rua, sangrando. As balas zuniam perto deles. Como ela, o jovem se juntou à revolta como um uivo coletivo contra o mau governo de al-Bashir. Nas semanas que se seguiram, os dois se apaixonaram. “Acho que ela foi muito corajosa", disse ele. Mas a revolução não terminou.

As novas liberdades no Sudão são frágeis. E alguns dizem que a luta para conservá-las está apenas começando. Um café em Cartum. Foto: Bryan Denton para The New York Times

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A minivan parou perto do local de protesto onde milhares continuam acampados, diante do quartel-general do exército do Sudão, exigindo uma transição completa para um governo civil. Samar, 28 anos, formada na universidade e desempregada, ergueu o vestido ao se sentar em uma cadeira de rodas para se juntar a eles.

Um tio a empurrou entre a multidão - passando pelos cafés ocupados por soldados de folga e casais flertando; pelos poetas de rua e bardos, declamando seus sonhos para o Sudão; e pelo músico de tranças no cabelo tocando músicas de Bob Marley. Seguida pela multidão entusiasmada. Ela parou no local em que fora baleada.

Ela disse que, durante toda a sua vida, conheceu apenas o Sudão de al-Bashir: um lugar sem vida onde a corrupção frustrou seu sonho de conseguir um emprego no governo. Agora, um novo país está surgindo - ou ao menos a promessa de um novo país. “Antes, ninguém celebrava", disse ela. “Não podíamos nos expressar nem dizer o que pensávamos. Agora, a sensação é de liberdade.”

O Sudão revolucionário se tornou palco de cenas extraordinárias. Após décadas de uma vida de repressão e abafamento sob o governo de al-Bashir, uma onda de exuberância percorreu a capital, Cartum, onde os jovens sudaneses desfrutam de liberdades recém-descobertas, como falar de política, festejar e até encontrar o amor.

O epicentro dessas mudanças é a área de manifestações perto do portão do quartel-general do exército. Mulheres de calça jeans caminham sem medo da detestada polícia da ordem pública, cujas patrulhas desapareceram das ruas. Os casais se formam com facilidade, e alguns andam de mãos dadas. Dia e noite, adolescentes arremessam pedras contra a lateral de uma ponte ferroviária, um ritmo constante que é como o pulso da revolução.

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Perto do Nilo, jovens relaxam em cadeiras de plástico sobre a grama, bebendo de um encanamento, prática proibida durante o governo de al-Bashir. Mais perto da água, dois homens bebiam de uma garrafa de araqi - vinho de tâmaras cujo consumo acarreta pena de 40 chibatadas de acordo com a lei da sharia em vigor no Sudão. O doce odor do haxixe paira no ar. Soldados uniformizados, que prometeram proteger os revolucionários, estão entre os celebrantes.

O governo islâmico de al-Bashir suprimiu cenas como essas no Sudão, que já era uma sociedade conservadora. Uma reação é possível. Mas as mudanças reverberam bem longe do foco dos protestos. Certa noite, uma jovem usando calça jeans foi vista na garupa de uma motocicleta no sul de Cartum, cabelos ao vento - uma cena antes impensável, que provavelmente resultaria em detenção. Agora, homens passando de carro buzinaram e fizeram sinal de positivo com as mãos. As mulheres sorriram formando um V com os dedos.

“No começo, as mudanças foram chocantes", disse a diretora de projetos Zuhayra Mohamed, 28 anos, que desafiou os pais ao participar dos protestos. “É como se o regime tivesse passado tempo demais com as mãos no nosso pescoço, e agora descobrimos algo maravilhoso.” Mas, se o antigo Sudão sumiu de vista, ele certamente não desapareceu.

Em uma manhã recente, dúzias de agentes uniformizados da polícia da ordem pública eram vistos bebendo chá sob algumas árvores do lado de fora do seu quartel-general em Cartum, pintado com cores vivas, perto da confluência entre Nilo Azul e Nilo Branco. De acordo com um comandante, estavam aguardando ordens.

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E, enquanto os manifestantes celebravam, Amer Yousif era punido com chibatadas. O motorista de 35 anos foi flagrado com uma garrafa de araqi. Na manhã seguinte, um juiz o condenou a 50 chibatadas, incluindo 10 adicionais por circunstâncias agravantes. O juiz “parecia furioso com a revolução", disse Yousif, erguendo a camisa para mostrar a marca do vergalho nas costas.

As novas liberdades no Sudão são frágeis. E alguns dizem que a luta para conservá-las está apenas começando. “É como se estivéssemos em um lugar escuro e pudéssemos ver um lampejo de luz",disse Nahed Elgizouli, que participou das manifestações. “Temos pela frente um longo caminho até chegar à liberdade.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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