Sudão ajuda a Europa barrando a imigração ao continente

Forças militares agem na fronteira com a Líbia

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Por Patrick Kingsley
Atualização:

ABU JAMAL, Sudão - Na fronteira oriental do Sudão, o tenente Samih Omar comandava dois carros de patrulha lentamente pelo deserto acidentado, antes de se deterem na rota improvisada de 3.000 quilômetros que milhares de africanos orientais percorrem todos os anos na tentativa de chegar ao Mediterrâneo, avançando então até a Europa.

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As patrulhas dele na fronteira com a Eritreia estão ajudando o Sudão a fechar uma das passagens mais movimentadas da trilha de imigração que conduz à Europa. Mas o tenente Omar não é um simples agente de fronteira. Ele trabalha para a temida polícia secreta do Sudão, cujos líderes são acusados de crimes de guerra; mais recentemente, seus oficiais foram acusados de torturar imigrantes.

Indiretamente, ele também trabalha na defesa dos interesses da União Europeia.

“Às vezes", disse o tenente Omar Said, “tenho a sensação que esta é a fronteira sul da Europa".

Três anos atrás, quando uma histórica maré de imigrantes chegou à Europa, muitos líderes do continente reagiram com braços abertos e idealismo altruísta. Mas, com o populismo raivoso e a agitação política trazidos pela crise de imigração, a União Europeia está limitando o fluxo humano, em parte com a transferência da responsabilidade da gestão das fronteiras para países com históricos questionáveis de respeito aos direitos humanos.

Em termos práticos, a abordagem está funcionando: o número de imigrantes que chegam à Europa foi cortado em mais de 50% desde 2016. Mas os defensores da imigração dizem que o custo moral é alto.

Para fechar a rota marítima que leva à Grécia, a União Europeia está pagando bilhões de euros a um governo turco que está desmontando a democracia no país. Na Líbia, a Itália é acusada de subornar alguns dos mesmos milicianos que há muito lucram com o contrabando para a Europa (muitos dos quais são acusados também de crimes de guerra).

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No Sudão, que é atravessado pelos imigrantes que tentam chegar à Líbia, o relacionamento tem como base necessidades mútuas: os europeus querem a fronteira fechada, e os sudaneses querem o fim de anos de isolamento em relação ao Ocidente.

A Europa segue sustentando um embargo à venda de armas ao Sudão, e muitos líderes sudaneses são párias internacionais, acusados de terem cometido crimes de guerra durante o conflito civil em Darfur, região no oeste do Sudão. Mas o relacionamento está se aprofundando. Um diálogo recente, chamado de Processo de Cartum (em homenagem à capital do Sudão), se tornou uma plataforma para 20 conferências a respeito de imigração internacional frequentadas por representantes da União Europeia e seus colegas de muitos países africanos, incluindo o Sudão. A União Europeia concordou que Cartum irá funcionar como o centro de uma colaboração de combate ao contrabando.

A Europa sustenta um embargo à venda de armas ao Sudão, mas usa o país para ajudar a limitar o fluxo de imigrantes vindos da África Oriental. (Patrick Kingsley/The New York Times) Foto: (Patrick Kingsley/The New York Times)

Embora o dinheiro europeu não tenha sido repassado diretamente a nenhum órgão do governo sudanês, o bloco injetou 106 milhões de euros no país por meio de agências humanitárias e organizações independentes de caridade.

“Não estamos incentivando o Sudão a limitar a imigração, e sim administrar a imigração de uma maneira segura e digna", disse Catherine Ray, porta-voz da União Europeia.

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Os críticos dizem que os líderes europeus estão dependendo implicitamente de um aparato sudanês de segurança cujos comandantes foram acusados pelas Nações Unidas de terem cometido crimes de guerra em Darfur.

“Não há remessas diretas de dinheiro", disse Suliman Baldo, autor de um estudo a respeito da parceria entre Europa e Sudão para questões de imigração. “Mas a UE basicamente legitima uma força abusiva.”

Na fronteira perto de Abu Jamal, o tenente Omar e vários membros de sua patrulha são da ala das forças de segurança sudanesas comandadas por Salah Abdallah Gosh, um dos muitos funcionários do governo sudanês acusados de orquestrar ataques contra civis em Darfur.

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Em outros pontos, a fronteira é protegida pelas Forças Rápidas de Apoio, uma divisão do exército sudanês formada a partir das milícias janjaweed que comandavam os ataques contra civis no conflito de Darfur.

O centro de coordenação do combate ao contrabando planejado para Cartum, que seria administrado por funcionários do Sudão e de vários países europeus, como Grã-Bretanha, França e Itália, dependerá em parte de informações fornecidas pela força sudanesa de segurança conhecida como N.I.S.S., de acordo com o diretor do departamento de polícia de imigração, general Awad Elneil Dhia.

E ao menos três países europeus (Bélgica, França e Itália) permitiram a entrada de policiais sudaneses para acelerar a deportação de solicitantes sudaneses de asilo, disse o general Dhia. 

Quatro deportados dizem ter sido torturados ao voltarem para o Sudão, alegações negadas pelo general Dhia. Um deles era um dissidente político de Darfur deportado para Cartum no final de 2017, onde disse ter sido detido ao chegar por agentes do N.I.S.S. e, em seguida, torturado.

Faz tempo que os serviços de segurança sudaneses também são acusados de lucrar com o contrabando, mas o general Dhia atribuiu a culpa a poucos casos isolados. Ele disse que o Sudão continua sendo um parceiro viável para a Europa na batalha contra a imigração irregular.

“Não somos tão distantes dos seus padrões", disse ele.

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