Série da HBO, 'Silicon Valley' mostra lado obscuro do Vale do Silício

Ao longo de cinco anos, produção se tornou cada vez mais sombria, em compasso com a indústria de tecnologia

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Por Farhad Manjoo
Atualização:
Herói ou vilão?Richard Hendricks, o 'chefão' da Pied Piper Foto: HBO

Quando a série de TV Silicon Valley estreou na HBO em 2014, o Vale do Silício ainda não havia arruinado o mundo. Aqueles foram dias frenéticos para os titãs da alta tecnologia. Bilionários digitais eram super-heróis de capas de revistas e não supervilões levados para depor no Congresso por influírem em eleições, semearem genocídio, desacreditarem a verdade e monopolizarem o comércio mundial. 

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Na época, o Uber era uma só uma promessa de solução para o tráfego urbano. Bill Gates era o maior filantropo do mundo e você não seria motivo de riso por sugerir – como fazem rotineiramente os próprios bilionários e os candidatos presidenciais – que não deveria ser permitido a ninguém ficar rico como ele. As apostas eram menores. Durante cinco temporadas, Silicon Valley foi cruelmente precisa em atacar os defeitos antissociais dos gurus da tecnologia – mas também tratou as grandes empresas de tecnologia com luva de pelica. 

A gangue dos esquisitões das startups iniciantes era geralmente mostrada como um grupo de caras legais, pelo menos se comparados a seus equivalentes da vida real. Não eram cúmplices de nazistas, não estavam destruindo democracias e nem tomavam dinheiro de monarcas assassinos do petróleo. Comparada a outros retratos pop de centros de poder da nação, como Wall Street, Hollywood ou Washington DC, Silicon Valley descobriu no Vale do Silício o poder de deslumbrar, inspirar e espantar.

Mas depois de cinco anos, a sátira tecnológica da HBO tem que se ajustar. Com uma sociedade afogada em tecnologia e hipnotizada pelos celulares, Silicon Valley se tornou mais ácida, captando uma tendência mais sombria da indústria tecnológica. O próprio idealismo da startup protagonista da série, a Pied Piper, mostra isso: cada temporada mostrou novos motivos para a empresa abandonar seus ideais. Agora, ela traz grandes questões: pode o bem coexistir com a cobiça? Pode-se agir de modo não ético, mas com fins éticos? O dinheiro necessariamente arruína tudo – e em que medida isso importa, quando se fala em bilhões?

Trata-se de uma virada hilariantemente sombria. A nova temporada começa com Richard Hendricks (Thomas Middleditch), chefão da Pied Piper testemunhando no Congresso sobre os nobres esforços de sua empresa para solapar o Facebook, Google e Amazon – “impérios” corporativos que “monitoram todos os momentos de nossa vida”e “usam nossos dados para lucrar”.

Mas seguir o caminho da ética não é fácil no Vale do Silício. Sem conhecimento de Richard, a Pied Piper também espiona seus usuários. Ele próprio, em suas manobras para salvar a empresa, tem de decidir se aceita US$ 1 bilhão de um investidor chileno ligado ao regime de Pinochet.

O segundo capítulo da nova temporada, que será exibido neste domingo, termina com uma metáfora contundente. Enquanto Richard avalia de pega o dinheiro do investidor problemático, um bando de pássaros se choca com a vidraça do chileno e um jardineiro recolhe os pequenos corpos. A metáfora é simples: no mundo da tecnologia, você constrói um edifício para ser admirado e, se o resultado forem algumas mortes inesperadas, dá sempre para contratar alguém que limpe a sujeira. “Fazer o quê?”, pergunta o investidor chileno, dando de ombros.

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Gênero

Apesar dos pesares, Silicon Valley ainda é uma comédia. Por buscar mais humor que pavor no mundo do Vale do Silício, é difícil suspeitar que vá ser a última série do gênero, ao menos por um tempo. Enquanto isso, porém, será mais frequente ver abordagens televisivas da indústria de tecnologia de modo sério, direto e assustador – e sim, isso é muito Black Mirror

É uma intenção ambígua: mesmo nesta temporada, Silicon Valley ridiculariza a insistência dos gurus da tecnologia de que seu objetivo primário é “melhorar o mundo”. Mas, ao mesmo tempo, o criador da série, Mike Judge, argumenta que há uma nítida diferença entre Wall Street e o Vale do Silício: a primeira só liga para dinheiro, mas nas empresas de tecnologia as empresas desejam algo maior. 

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É difícil crer que ele esteja certo: apesar da virada “sombria” da série, é preocupante de que esteja no horizonte um final otimista, no qual a Pied Piper esmaga seus competidores sem vender sua alma. Isso porque a melhor característica da série é sua bem pesquisada verossimilhança: Dick Costolo, ex-presidente executivo do Twitter, é um dos muitos nomes do Vale consultados ativamente pelos roteiristas para garantir a fidelidade.

Um final redentor pode pôr tudo isso a perder. O que temos visto nos últimos anos no Vale do Silício é que é quase impossível ser bom e bem-sucedido. O sucesso na tecnologia quase sempre envolve exploração – de usuários, investidores, funcionários. E quando o sucesso chega, ele irrompe numa escala tão disruptiva que invariavelmente alguém sai ferido. Será curioso ver como Silicon Valley vai resolver essas tendências traiçoeiras – idealmente, Richard e sua turma deveriam cair com honra, preferindo deixar a Pied Piper morrer a ter sucesso vendendo-a. Mas isso também seria irrealista. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

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