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Uber chega à Bolsa com valor bilionário, mas motoristas têm pouco a celebrar

Peter Ashlock, motorista desde 2012, relata as duras condições de trabalho de profissionais no aplicativo; Uber pode chegar a US$ 91 bilhões em valor de mercado nesta sexta, 10

Por David Streitfeld
Atualização:
Motorista do Uber desde 2012 e artista, Peter Ashlock fez uma cabeça em referência aTravis Kalanick, cofundador da empresa Foto: Jason Henry/The New York Times

A venda de ações do Uber, que deve ter início nesta sexta 10, tornará um grupo de pessoas notavelmente ricas. Peter Ashlock não é um deles, apesar de ter trabalhado para a empresa quase desde o início.

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Ashlock, que completou 71 anos no mês, acumulou mais de 25 mil viagens como motorista do Uber desde 2012. Seu Nissan Altima tem quase 340 mil quilômetros rodados - quase a distância até a lua. Seus passageiros classificam-no em 4,93 entre cinco estrelas. Sua crítica favorita: “O cara dirigia como um taxista”.

Embora seja parte integrante do sucesso do Uber, Ashlock mal consegue sobreviver. Sua declaração para o Imposto de Renda de 2018 mostrará uma receita bruta ajustada na faixa de US$ 40 mil, melhor do que 2016 e 2017. Mas ele superou seu limite de crédito de US$ 3,2 mil na oficina local da mecânica Midas e precisa obter US$ 5 mil para pagar os impostos. Ele tem seguridade social, mas nenhuma poupança para comprar um carro novo que lhe permita continuar trabalhando.

O Vale do Silício sempre foi uma loteria onde uma riqueza imensa é assegurada por uns poucos enquanto todos os outros precisam aguardar por melhor sorte em outro momento. Raramente, no entanto, a disparidade tem sido tão evidente quanto com o Uber. Seu valor de mercado de ações deverá ser de cerca de US$ 91 bilhões, o que tornaria a oferta pública da empresa em uma das mais valiosas do Vale do Silício em todos os tempos.

Entre aqueles que têm algo para comemorar estão: os fundadores do Uber, o conglomerado japonês SoftBank, os capitalistas de risco de elite Benchmark e o Google Ventures (GV) do Google, o Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita e a gigante de investimentos Fidelity. Alguns já receberam em dinheiro vivo. Travis Kalanick, cofundador e presidente executivo do Uber até ser forçado a sair depois de uma série de escândalos, faturou US$ 1,4 bilhão vendendo menos de um terço de suas ações para investidores privados em 2017.

Como contratados independentes, os motoristas não são elegíveis para benefícios de empregados, como férias pagas ou opções de ações. No final de fevereiro, o Uber disse que iria oferecer bônus de US$ 100 a US$ 10 mil para os motoristas de longa data. Seu concorrente principal, Lyft, fez o mesmo quando começou a negociar ações na bolsa em março.

Ashlock, que mora com sua esposa, Daphne, em uma casa alugada na comunidade rural de Cotati, 80 quilômetros ao norte de São Francisco, vai pegar o quanto puder. Mas não chame isso de um triunfo.

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“Já viu o W.C. Fields em O Guarda? (1940), ele indaga. “Ele pega um ladrão e recupera os US$ 25 mil roubados, de modo que o presidente do banco lhe dá um aperto de mão e um belo calendário ilustrado anunciando o banco. É insignificante”.

Ashlock ilustra a promessa vazia da chamada “economia do emprego de curto prazo” (gig economy), que se anunciava como sendo superior ao relacionamento habitual de gerente-empregado. Ela prometia aproveitar o poder da tecnologia para libertar os milhões que enfrentam dificuldades.

“O Uber é uma nova maneira de trabalhar: são pessoas que têm liberdade para começar e parar o trabalho quando quiserem, com o apertar de um botão”, disse Kalanick em 2016.

As empresas de táxi de estilo antigo eram um vilão ideal. Os taxistas, proclamava o Uber, eram operários oprimidos. Em um comunicado de imprensa de 2014, os taxistas precisavam gastar “mais de US$ 40 mil por ano só no aluguel do táxi, para que os ricos donos de empresas pudessem colher os benefícios e os motoristas não tinham outra opção para ganhar a vida”.

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Já ser motorista do Uber, é “sustentável e lucrativo”, disse a empresa. Motoristas foram descritos como empresários com uma renda média de US$ 74 mil em São Francisco e US$ 90 mil em Nova York. Um taxista de Denver que mudou para o Uber foi citado: “Eu me sinto emancipado”.

A Federal Trade Commission (Comissão Federal de Comércio) considerou as alegações como propaganda falsa e a empresa concordou com um acordo de US$ 20 milhões.

Ashlock passou uma década como taxista em São Francisco nos anos 1970 e 1980, enquanto procurava ganhar a vida como artista. Ele se lembra de levar para casa cerca de US$ 500 por semana, o equivalente a US$ 1.500 agora. Comprava gasolina para o táxi, mas não precisava se preocupar com reparos ou manutenção.

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Em 2018, trabalhando principalmente para o Uber e um pouco para a Lyft, ele dirigiu, dirigiu e dirigiu. Isso produziu receitas brutas de US$ 88.661. As empresas ficaram com US$ 20 mil em comissões e taxas. Ele pôde deduzir US$ 30 mil em seus impostos por gasolina e depreciação. Um pequeno acordo de ação coletiva e a Seguridade Social ajudaram no seu resultado final, mas os pagamentos de um antigo empréstimo estudantil o afetaram.

Quanto mais Ashlock dirige, mais rapidamente seu carro se desvaloriza, e se aproxima do momento em que precisará gastar US$ 23 mil que ele não tem, em um novo Altima. Ele está dirigindo para pagar suas contas de conserto do carro - US$ 5 mil nos últimos seis meses, além de pneus novos.

“Essa foi a grande inovação do Uber - fazer os motoristas absorverem as despesas gerais”, disse ele.

"É a competição desenfreada", disse Michael Reich, especialista em economia do compartilhamento de carros e copresidente do Centro de Dinâmica Salarial e Emprego na Universidade da Califórnia, em Berkeley. “Você se afunda cada vez mais em um buraco ao longo do tempo.”

Sair traz seus próprios problemas. Em um país que valoriza os jovens e baratos, Ashlock tem poucas outras opções para ganhar a vida.

“Eu estou à mercê do Uber”, disse ele.

Vômito no banco de trás é o menor dos problemas

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Motoristas do Uber protestam por condições melhores na frente da sede da empresa em Santa Monica, Califórnia, em junho de 2014 Foto: Lucy Nicholson/Reuters

Dirigir para o Uber não é uma profissão que leva à fama, mas Ashlock alcançou mais do que qualquer um dos seus 3 milhões de pares em todo o mundo. Ele foi citado extensivamente, tornando-se um dos rostos públicos do compartilhamento de caronas ao apresentar o ponto de vista de um piloto.

Ele não é um ativista. Houve uma recente greve dos motoristas em Los Angeles. Ashlock nem ficou sabendo isso. Quando ele fica muito bravo com o Uber, sua rebelião só vai até dirigir para a Lyft. Foi o que ele fez em grande parte de 2017. Sua receita bruta ajustada naquele ano foi de US$ 22.378.

Sua esposa, uma treinadora de cavalos aposentada que tem problemas de saúde, também não é uma agitadora. "Eu estou insensível em relação a todo o assunto de dirigir”, disse ela.

Em uma quarta-feira recente, a Ashlock preparou um sanduíche de carne em lata, cenouras, um pouco de pó de energia C4 misturado com água e uma dose extra de energético Kirkland. Às 4h23, ele partiu para São Francisco, onde estão as corridas.

Ele estava em uma busca. Trata-se do Uber-speak para as metas que a empresa oferece. Se ele completasse 60 viagens na manhã de sexta-feira, por exemplo, ele ganharia um bônus de US$ 30. Mais 20 viagens renderiam mais US$ 10. O Uber precisa dos motoristas nas ruas - se os clientes tiverem que esperar, eles podem pegar seus próprios carros.

Se Ashlock não escolher uma missão, ele receberá uma. Para os motoristas em tempo integral, as metas podem ser lucrativas se não forem confiáveis: quase um quarto do pagamento que Ashlock levou para casa do Uber no ano passado estava na forma de incentivos. Este, no entanto, era pequeno demais para se preocupar. “Trinta dólares”, ele disse, “é como se eu 'não me importasse'”.

Alguns minutos depois das 3 horas da madrugada, Ashlock voltou para casa. Segundo o Uber, ele fez 25 viagens em nove horas. Ele ganhou US$ 200 em corridas depois da comissão do Uber, mais US$ 11 em gorjetas e um bônus promocional de US$ 13.

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Isso é quase US$ 25 por hora, o que parece impressionante. Mas custou US$ 47 encher o tanque do Altima. E ele estava na verdade trabalhando há mais tempo do que marcava o relógio. Depois que ele deixou seu último passageiro e desligou o aplicativo Uber, estava a mais de 100 quilômetros de distância de sua casa.

Ele e sua esposa moravam em Crockett, que fica 32 quilômetros mais perto de San Francisco, mas foram despejados quando o local foi vendido há dois anos. Sua casa em Cotati, um antigo prédio agrícola, é uma pechincha para a cara região da Bay Area, por US$ 1,4 mil por mês. Há muito espaço para fazer arte, mas pouca luz natural.

Ashlock não é sentimental quanto às empresas de táxi do passado. Ele conhecia três taxistas que foram assassinados. Os motoristas estão mais seguros agora, pois é necessário um cartão de crédito para estabelecer uma conta e obter uma corrida. E eles servem pessoas e bairros que nunca serviram antes.

Mas o vômito acabou. Antes, ele podia escolher não levar garotas de 22 anos que pareciam ter bebido demais; agora ele deve se comprometer com os passageiros antes de vê-los. Algumas vezes por ano, algum passageiro vomita no banco de trás.

A impessoalidade também está em alta. Para que o Uber valha quase US$ 100 bilhões, não pode se dar ao luxo de ter muitos humanos lidando com os motoristas. Em uma noite de sábado, quando estava terminando uma semana com 120 viagens, Ashlock recebeu um e-mail do Uber.

“Oi Peter”, dizia. “Um passageiro mencionou que uma discussão em uma viagem recente com você fez com que eles se sentissem pouco à vontade.”

Quem? Quando? O que Ashlock supostamente teria dito? Nenhum detalhe foi fornecido. Outras vezes, as tentativas do Uber de ser íntimo podem ser irritantes. Em uma revisão de Ashlock, em março se observou: “Você dirigiu mais à noite. Você deve ser a coruja da noite”.

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O Uber e a Lyft são as duas primeiras empresas do Vale do Silício a serem negociadas em bolsa e dependem de milhões de trabalhadores mal pagos. Isso incomodou um funcionário anônimo da Uber, que recentemente escreveu no Medium que “precisamos fazer o certo com nossos motoristas” e pediu o fim das “abusivas práticas de trabalho impostas a uma força de trabalho sistemicamente sem poder”.

O Uber se recusou a comentar, citando o período de silêncio pré-IPO.

Nos dias de folga, Ashlock trabalha em sua arte. Ele criou cabeças de entes queridos em mídia mista, bem como de figuras públicas que o irritam. Kalanick foi uma escolha inevitável.

O cabelo do empresário é feito de papelão triturado, colado meticulosamente em uma tira de cada vez. Um táxi amarelo está colidindo em sua bochecha esquerda. Há uma tatuagem de Ayn Rand, o alto profeta do egoísmo, em seu pescoço.

“A escultura me faz sorrir”, disse Ashlock. “É a única coisa sobre o Uber que faz isso." /TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

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