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A lição de Owen e o fanatismo das guerras contemporâneas

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Por Redação
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Minha amiga Kathrin Holzach, alemã de nascimento, argentina por adoção e cidadã do mundo, me enviou de Nairóbi, no Quênia, uma história que me comoveu até os ossos. Tudo se passou tal como eu descrevo. Em 26 de dezembro de 2004, um tsunami atingiu o litoral do Quênia, devastando vidas, fazendas, aldeias e bosques - e causando grandes prejuízos econômicos ao país africano. Uma de suas vítimas foi um jovem hipopótamo de alguns meses de idade e 300 quilos chamado Owen, que as águas arrastaram pelo Rio Sabaki até o Oceano Índico. As ondas enlouquecidas pelo furacão o devolveram ao continente, deixando-o encalhado e aterrorizado nos arredores de Mombasa. Para sua sorte, ali o encontraram voluntários da reserva natural de Lafarge Park, vizinha daquele porto queniano, que se esforçaram para acalmá-lo e resgatá-lo. Mas não conseguiram devolvê-lo a sua mãe, que sumiu no cataclismo. Os hipopótamos têm uma arraigada vocação familiar e as crias vivem grudadas em suas progenitoras nos primeiros 4 anos de vida. Owen, o órfão, logo encontrou uma mãe adotiva. A ecologista Paula Kahumbu, que dirige o Lafarge Park, ficou surpresa ao perceber que, entre todas as fêmeas da reserva, Owen havia eleito uma grande tartaruga centenária - e esta havia assumido suas funções maternais com carinho e responsabilidade. Desde então, mãe e filho são inseparáveis. Nadam, comem e dormem juntos, e toda vez que alguém se aproxima da tartaruga, o pacato Owen se enfurece e dá uma bufada que espanta os pássaros das árvores dos arredores. A história não me surpreende muito. Alguns anos atrás, estive lecionando durante um semestre na Universidade George Washington, de Saint Louis, Ohio. Na frente do meu apartamento havia um Parque Zoológico onde caminhava pelas manhãs. Ali descobri um hipopótamo recém-nascido - rosado, feioso e simpático - com o qual fiz excelente amizade. Juraria que ele se alegrava ao me ver. Os hipopótamos são criaturas benignas e sonhadoras. É emocionante vê-los revolver-se na lama com alegria infantil ou esperar com infinita paciência, que algum beija-flor ou mariposa se lhes entre na boca - permitindo que eles possam, assim, acrescentar alguma novidade a sua dieta herbívora. Também me inspiram grande simpatia as tartarugas. Uma vez tentei dar uma a meu filho mais novo. Gonzalo era um menino tão urbano que, quando teve o animalzinho entre as mãos, o esfregou várias vezes no solo para que ele começasse a rodar, como os automóveis de corda. A lenta criatura às vezes desaparecia por muitos dias no jardim. E podia ficar horas sem tirar sua cabecinha da carapaça, mas quando o fazia, atraída por pedaço de alface ou de biscoito, mastigava com infinita calma e seus olhos despediam uma luz de sabedoria. A história de Owen e sua mãe adotiva tem sua moral, é claro. Não é uma vergonha que dois animais pertencentes a espécies tão distintas como tartarugas e hipopótamos possam conviver, se relacionar e se amar, e os estúpidos bípedes humanos se matem como selvagens bastando apenas descobrir diferenças amiúde insignificantes entre eles? GENOCÍDIOSQuando se passam em revista as guerras, genocídios, matanças mais sangrentas dos últimos anos, comprova-se que as paixões homicidas por trás das piores tragédias coletivas se desencadeiam entre comunidades muito próximas, cujas rivalidades se fundam em distinções de doutrina religiosa, ideologia política ou costumes étnicos. Um caso particularmente monstruoso é o do Iraque. Para cada soldado estrangeiro vítima do terror, tombaram 100 ou 200 iraquianos assassinados por seus próprios compatriotas. Fanáticos xiitas matam sunitas e fanáticos sunitas matam xiitas e, dentro das duas grandes comunidades muçulmanas do país, as distintas seitas xiitas e sunitas se matam entre si, enquanto muçulmanos de ambas as tendências matam curdos e cristãos, e os curdos matam xiitas e sunitas, e assim sucessivamente até produzir uma vertiginosa montanha de cadáveres. EX-IUGOSLÁVIAE o que dizer das carnificinas no coração da Europa ocidental? A desintegração da Iugoslávia ocorreu em meio a assassinatos coletivos espantosos. Sérvios assassinavam bósnios e croatas, e os últimos se enfureciam contra sérvios e bósnios - e estes últimos não liquidavam tantos como aqueles não por falta de vontade, mas de meios e porque eram poucos. O terrorismo entre sérvios e kosovares - que conviveram centenas de anos num mesmo espaço territorial - não foi menos feroz. A porcentagem dos mortos nos Bálcãs em relação à população supera a média de vítimas da 2ª Guerra Mundial. A lista poderia ser imensa se acrescentássemos a esses dois exemplos os das carnificinas em Timor Leste, Ruanda e Burundi, Biafra, Eritreia, Somália, República Democrática do Congo, Guatemala, El Salvador, Haiti, Peru, Colômbia, Chechênia, etc. A ideia de que o ser humano é superior ao animal porque possui razão e, segundo os crentes, alma, é injusta se considerarmos a conduta de uns e outros em relação a seu próximo. Em geral, os animais só matam para buscar o sustento e assegurar sua sobrevivência. Muito raramente eles se atacam entre famílias ou indivíduos da mesma espécie ou pelo puro prazer de matar. Os seres humanos matam na maioria das vezes - se julgarmos à luz imparcial da razão - por apetites menores, fanatismos, intolerâncias, perversões e egoísmos. E os que desatam as guerras e matanças costumam padecer em meio a esses descontroles tanto quanto suas vítimas. AVANÇOS TECNOLÓGICOSOs avanços científicos e técnicos produzidos pelo conhecimento permitiram feitos notáveis no campo da saúde, da educação e do aproveitamento da natureza. Mas também equiparam a humanidade com um arsenal tão desmedido de armas de destruição em massa que só uma parte dele bastaria para acabar com toda a vida do planeta. O desenvolvimento e o progresso - notáveis, sem dúvida - nos foram aproximando cada vez mais de um abismo de violência e decomposição do qual já estamos bastante conscientes e, no entanto, nenhum governo, seja qual for sua índole, parece seriamente decidido a conter a marcha nessa direção. Assim, se alguém me perguntasse, em uma dessas enquetes que os jornais e revistas costumam fazer para eleger o personagem mais importante de 2009, eu não escolheria ninguém da triste espécie à qual pertenço, mas o hipopótamo Owen e a tartaruga que é sua mãe adotiva - exemplos, há cinco anos, de sabedoria, solidariedade e amor que os belicosos humanos deveriam imitar.

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