Lucas Mendes: A viagem das crianças

As trajetórias paralelas da roqueira Patti Smith e do fotógrafo Robert Mapplethorpe na Nova York dos anos 70.

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Por Lucas Mendes
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Para minha geração da bossa nova, Chico Buarque e Frank Sinatra, não era fácil gostar nem entender os mistérios do rock and roll, entre eles a ausência de roqueiras. Uma das minhas poucas seduções no rock era Janis Joplin, que nunca vi cantar. Vi Patti Smith mais de uma vez, gostei de três ou quatro músicas e tivemos vidas tangenciais em Nova York. Chegamos quase ao mesmo tempo na cidade arrebatadora, moramos nas mesmas vizinhanças com pouco dinheiro - ela com muito menos - e frequentamos lugares comuns. Patti veio de família de classe media baixa, católica e careta. Saiu de casa, em Nova Jersey, aos 19 anos, depois de ter um filho bastardo com rapaz dois anos mais novo. Saiu de casa, sem dinheiro, e foi à procura de abrigo no apartamento de amigos distantes no Brooklyn. Ninguém estava em casa. No apartamento da frente, um jovem magro estava deitado com a porta aberta. Não sabia onde estavam os vizinhos, foi afavel, mas de pouca ajuda. Durante semanas ela dormiu em bancos de parques, trens do metrô, corredores de prédios e, mesmo depois de encontrar emprego na livraria Brentano's, continuou sem teto. Dormia no banheiro da livraria. Um dia, a pedido do chefe, saiu para jantar com um homem mais velho, que a convidou para para tomar um drink no apartamento dele. Em pânico, não sabia como fugir, quando viu o afável rapaz do Brooklyn a poucos metros. Correu para ele e perguntou se podia fingir que era namorado dela. Voltou com ele a tira-colo: "Este é Bob, meu namorado''. Bob era Robert Mapplethorpe - como ela, de cidade pequena, família de classe media baixa, católica. Quase da mesma idade, passaram meses morando nas ruas, tornaram-se amantes-amigos, apaixonados por arte, sem nenhuma ideia do que queriam fazer na vida. Ela escrevia poemas, apreciava Rimbaud, Claudel, conhecia poesia francesa, mas música não era o negócio dela. Ele desenhava, estudava pintores em casa, misturava arte tântrica com Cristo, a virgem, o cordeiro e LSD. "A igreja me leva a Deus. LSD me leva ao universo. Arte me levou ao demônio e o sexo me prendeu com ele'', dizia. Apesar da coabitação, do respeito e do amor de um pelo outro, Robert preferiu os homens. Não tinha limites. Se prostituía em Times Square e outros pontos da cidade para pagar a conta do quarto que dividiam no hotel Chelsea. Viajava no ácido quase todos os dias. Com uma Polaroid, por acaso, descobriu a fotografia e com ajuda de amigos ricos e gays fez conexões com Peggy Guggenheim e o que havia de mais rico e fino nas artes de Nova York. Era um homem bonito, trafegava desenvolto entre os apartamentos do Central Park, as esquinas de Times Suqare, as ruas e os subterrâneos do Metropolitan, com acesso a coleções de fotos jamais exibidas. A âncora dele ainda era Patti Smith, que dava força e opiniões mesmo depois que passaram a viver separados, ela quase sempre sozinha, ele com os homens. A carreira dele de fotógrafo deslanchou na década de 70 e a dela, de letrista de rock, subiu na paralela. Encontrou uma guitarra e uma banda. Em 75 lancou seu primeiro álbum, Horses, com capa de Robert Mapplethorpe. Rolling Stone, a bíblia do rock, declarou que era um dos cem discos mais importantes do século 20, vale dizer, da história. Vieram outros treze, exposições de desenhos, livros de poesia, honras maiores do ministério de cultura da França. Fui vê-la no CBGB's, que ficava quase ao lado da minha casa. A canção Because the Night, que escreveu com Bruce Springsteen, disparou nas paradas. Parecia mais homem que a maioria dos roqueiros - antes de ficar famosa , o poeta Allen Ginsberg pensou que fosse um homem e deu nela uma cantada - mas diferente de todos eles, cuspia sem parar no palco e na plateia. Fui entrevistá-la quando ensaiava num estúdio perto de Times Square. Outras cinco ou seis pessoas estavam sentadas no chão, entre elas uma moça bonita que se dizia amiga de Patti. Rolou um flerte e quando descemos juntos no elevador ela me deu um amasso. Não acreditava na minha sorte. Quando a porta abriu no térreo, ela saiu que nem uma bala com meu dinheiro. Patti tambem tinha conexões perigosas no sub mundo de Times Square, mas nunca teve encrencas sérias. Roqueira pesada, mas de família. Na década de 80 se apaixonou por um músico, mudaram-se para Detroit, e ela saiu do mundo da música para cuidar dele e de dois filhos. Nunca deixou esfriar a conexão sentimental e artística com Robert, que fazia as capas de seus discos e fotografava a família. Rico e consagrado, com suas fotos leioloadas por milhões nas galerias de arte, morreu com 43 anos, de Aids, em 1986, pouco depois da morte do companheiro. Sem os remédios de hoje, ambos tiveram mortes doídas. O marido de Patti teve um infarto e morreu no ano seguinte, no dia do aniversario de Robert. Um mês depois morreu um querido irmão, também do coração. Deprimida, cheia de contas, em 1996 ela fez as malas e voltou com os filhos para Nova York. Tinha ficado fora dos palcos por 16 anos quando foi convidada por Bob Dylan para suas turnês. Ela vai fazer 65 anos e lancar seu 14º álbum em junho, This is the Girl, uma homenagem a Amy Winehiuse. A história dramática, muitas vezes hilária, está contada por Patti Smith no livro Just Kids, que ganhou um dos principais prêmios literários de 2010 e já vendeu mais de 500 mil exemplares. O título vem de uma das tardes do período do casal sem-teto numa caminhada por Washington Square. Uma mulher disse ao marido: tire uma foto deles. São artistas. O marido se recusou: "São apenas duas crianças". BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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