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A bala perdida no Senado

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Por Jerson Kelman
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Estive recentemente na Índia, a convite do Banco Mundial, para falar sobre a experiência brasileira na construção do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SNGRH), que começou a tomar forma a partir de 2001, com a criação da Agência Nacional de Águas (ANA). Trata-se de um dos dois sistemas previstos na Constituição federal de 1988. O outro é o Sistema Único de Saúde (SUS). É grande o interesse dos indianos na experiência brasileira, porque ambos os países são federações e têm bacias hidrográficas de grandes dimensões, estendendo-se por diversos Estados. Há similaridade também na coexistência de diversas entidades governamentais, tanto na esfera federal quanto na estadual, atuando de forma concorrente na administração dos rios. A História mostra que sem um sistema de gerenciamento capaz de harmonizar os interesses conflitantes no uso dos rios ocorre uma babel em que cada setor ignora a existência do outro. Por exemplo, o setor agrícola e o energético comportam-se como se as águas pudessem ser utilizadas de forma exclusiva, respectivamente para a irrigação e para a produção de eletricidade. Outro exemplo: a autoridade estadual permite que se faça uma captação ou se lance um efluente num rio sob sua jurisdição, sem atentar para as consequências sobre a quantidade e qualidade da água utilizada por outros usuários localizados rio abaixo, às vezes em outros Estados da Federação. Assim era o Brasil até muito recentemente. Assim ainda é a Índia hoje. Razão do interesse do Banco Mundial em engendrar uma cooperação nesse campo entre os dois países. O objetivo do sistema de suporte à decisão do SNGRH, desenvolvido na ANA, é propiciar o gerenciamento integrado dos recursos hídricos de uma bacia hidrográfica. A capacitação técnica já existe graças à dedicação e competência da equipe técnica da agência. Resta ainda que ocorra a adesão política das administrações estaduais. Nesse sentido, a estratégia da ANA tem sido disponibilizar as ferramentas computacionais do SNGRH para que todos os Estados possam delas fazer uso. E esperar que a adesão ao conceito de gestão integrada se dê voluntariamente, pelo convencimento de que quando se trata de administração de interesses comuns existem ganhos sinérgicos que devem ser compartilhados por todos. Apresentei esses conceitos a um seleto grupo de autoridades do governo da Índia, na esfera federal, e de quase todos os governos estaduais. Mostrei-lhes que o resultado do monitoramento de quase mil rios no Brasil depende de uma logística complexa. Só de uso de barcos pelas equipes técnicas, por exemplo, são 16 mil horas por ano. E que o resultado desse esforço, na forma de mapas, gráficos e tabelas contendo as vazões dos rios, os índices de qualidade das águas e outras informações imprescindíveis para a administração dos rios, pode ser obtido com uma simples consulta ao site da ANA. Os indianos ficaram entusiasmados com o que viram e manifestaram interesse em visitar o Brasil e, em particular, a ANA. O Banco Mundial também ficou muito satisfeito e se dispôs a custear a visita. Eu fiquei orgulhoso em ver a agência sendo internacionalmente reconhecida como uma experiência bem-sucedida e senti-me recompensado pelo esforço que despendi na sua implantação. Vinha da Índia, satisfeito com a perspectiva de cooperação entre os dois países, quando, numa escala em Paris, li a notícia sobre a "bala perdida" no Senado que vitimou Bruno Pagnoccheschi. Em apertada síntese, Bruno teve o seu nome rejeitado para um segundo mandato como diretor da ANA porque estava no lugar errado na hora errada. Seu nome foi submetido à aprovação do plenário do Senado momentos depois da notícia de que o presidente Lula teria feito referências supostamente desairosas aos senadores. Alguns deles, possivelmente tomados pela emoção, não mediram as consequências de seus atos e retaliaram o governo negando apoio à indicação de Bruno. Desisti da visita que faria a um museu para escrever este testemunho. Quando a ANA nasceu, em dezembro de 2000, éramos um punhado de três ou quatro a conceber a sua trajetória estratégica. Lá estava o Bruno. E lá sempre esteve ao longo desses quase nove anos. Primeiro como secretário-geral e depois como diretor. Sempre muito competente, cordial, eficaz e dedicado à causa de incrementar a qualidade da administração pública de nosso país e, em particular, de avançar na gestão dos recursos hídricos. O Brasil é hoje uma referência mundial nesse campo graças, em boa medida, aos esforços dele. Essa "bala perdida" atravessou o coração do Bruno e em sua trajetória abalou os que ainda creem ser possível elevar o padrão de moralidade e eficácia da administração pública. As repercussões pessoais, que certamente existem, não vão impedir que Bruno continue contribuindo para o progresso do País. Mas é preciso que os senadores mudem a maneira como as decisões são tomadas. Caso contrário, continuará prosperando na sociedade um perceptível sentimento de insatisfação com a classe política que fará surgir, mais cedo ou mais tarde, algum "salvador da pátria" que prometerá o paraíso em troca do esfacelamento da democracia. Imagino que os senadores que fizeram o "disparo" estejam agora, passada a emoção, embaraçados com o ocorrido e tentando achar uma solução que reverta a rejeição. Se conseguirem, tanto melhor. Se não conseguirem, que pelo menos assumam a quase impossível tarefa de encontrar um profissional tão bom quanto o Bruno para o mesmo cargo e, nas próximas vezes que tiverem de decidir em casos semelhantes, que cumpram o dever de avaliar se o candidato tem ou não condições de exercer o cargo para o qual foi indicado. Para os senadores que votaram a favor da aprovação, parabéns pela serenidade e responsabilidade na defesa do interesse público. Jerson Kelman, professor da Coppe-UFRJ, foi diretor-presidente da ANA (2001-04) e diretor-geral da Aneel (2005-08)