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A conta salgada do mau jornalismo

O caso da Fox, que teve de pagar quase US$ 800 mi a empresa vítima de suas campanhas de desinformação, mostra que há limites para esse modelo de negócios baseado em mentiras

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Por Notas & Informações
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O bom jornalismo custa caro, mas o mau jornalismo custa mais caro ainda. O caso da Fox News, pivô de um processo que envolvia desinformação sobre a eleição presidencial de 2020 nos Estados Unidos, mostra que a difusão de falsidades travestidas de jornalismo, malgrado atraia imensa audiência, cedo ou tarde resulta em imenso prejuízo para quem as produz.

Há alguns dias, a Fox Corporation fechou um acordo com a empresa Dominion Voting Systems para indenizá-la em US$ 787,5 milhões (cerca de R$ 4 bilhões) por tê-la acusado sistematicamente de ter ajudado a fraudar a eleição presidencial de 2020 de modo a impedir a reeleição do então presidente Donald Trump. A Dominion pleiteava indenização de US$ 1,6 bilhão, mas aceitou reduzir a pedida e encerrou o caso, para frustração de muitos – afinal, se o processo fosse adiante, provavelmente o dono da Fox, o magnata Rupert Murdoch, seria chamado a depor e teria que explicar por que permitiu que a campanha contra a Dominion prosseguisse mesmo que vários jornalistas e executivos na Fox soubessem que se tratava de uma falsa acusação, como atestam comunicações internas da emissora incluídas como provas. O próprio Murdoch, mostra um dos documentos, qualificou a acusação contra a Dominion de “realmente louca”.

Entre as mensagens anexadas como provas estão e-mails trocados entre o então principal âncora da Fox, Tucker Carlson, e a direção da empresa, nos quais admitem que, ao contrário do que diziam no ar, não houve manipulação nenhuma do resultado da eleição. Usando seu enorme poder na emissora, Carlson ainda pressionou executivos da Fox News pela demissão sumária – “tipo esta noite”, como ele escreveu em uma das mensagens – de jornalistas da própria casa que ousaram contestar a alegação de que a eleição fora fraudada, em vista da absoluta falta de provas de que as urnas eletrônicas tinham sido adulteradas.

Principal usina de fake news sobre a eleição presidencial de 2020, em particular sobre o caso da Dominion, o programa de Carlson era uma espécie de centro difusor dos medos, preconceitos e ódios que animam a extrema direita norte-americana, tornando-o líder de audiência entre todos os canais de TV por assinatura nos Estados Unidos. Na esteira do caso, a Fox afinal demitiu Carlson, desfazendo-se de seu reluzente anel para preservar os dedos.

Ao longo do caso, a Fox argumentou que o processo movido pela Dominion violava a liberdade de imprensa prevista na Constituição americana, porque, segue o raciocínio, a emissora estava sendo perseguida por ter simplesmente reproduzido a opinião de diversas personalidades, inclusive o presidente Trump. Ou seja, a Fox, como é habitual entre os que lucram com mentiras, escorou-se em proteções constitucionais básicas para legitimar o sistemático envenenamento da democracia.

Felizmente, mesmo num país que trata a liberdade de expressão como um direito sagrado, a desculpa não colou, ante a enxurrada de provas de que se tratava de difamação intencional.

Seria ingênuo supor que a Fox não esteja gestando outro Tucker Carlson para apresentá-lo em momento oportuno; afinal, não foi Carlson quem fez a Fox, antes pelo contrário – esse jornalista, que desonra a profissão, foi durante um bom tempo um produto cuidadosamente manufaturado pelos executivos da emissora para atiçar os instintos mais primitivos de uma audiência progressivamente incapaz de pensar por si mesma. Há todo um nicho de negócios que se criou em torno do negacionismo e da desinformação, bastante explorado por maus jornalistas e vitaminado pela irresponsabilidade das redes sociais, que desafia as leis, a ética e a democracia em todo o mundo.

Para todos os efeitos, contudo, o desfecho do caso da Dominion contra a Fox serve para mostrar que felizmente há um limite, pecuniário e reputacional, para os que insistem em fazer da desinformação um modelo de negócios.