Imagem ex-librisOpinião do Estadão

A cracolândia e a escola

O calvário do tradicional Liceu Coração de Jesus expõe a degradação do centro paulistano e sobretudo o fracasso em solucionar a catástrofe humanitária que é a Cracolândia

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
Atualização:
2 min de leitura

O colégio paulistano Liceu Coração de Jesus anunciou o encerramento das atividades de ensino por problemas financeiros e queda nas matrículas. A penúria decorre dessa queda, e a queda, da insalubridade e insegurança que envolvem a escola: ela está a poucos quarteirões da Cracolândia.

Se o fechamento de qualquer escola é triste, nesse caso, o amargor é redobrado. Primeiro, porque ela é uma das mais tradicionais do Brasil. Segundo, por expor a degradação do centro de São Paulo, emblema de uma peste que devora o coração das metrópoles do País.

Fundado em 1885 pela Congregação Salesiana de S. João Bosco, para educar jovens de baixa renda, como filhos de escravos e imigrantes, “para a realização pessoal e o protagonismo na sociedade”, o Liceu foi a primeira instituição paulistana a oferecer ensino médio noturno e já contou com cursos técnicos e superiores. O conjunto arquitetônico, que, além do colégio e do Santuário de inspiração renascentista, conta com um teatro e um complexo esportivo, foi tombado. 

Lá foram forjados os corações e mentes de estadistas como Franco Montoro e Carvalho Pinto; intelectuais como Napoleão Mendes de Almeida; e artistas como Grande Otelo e Sérgio Cardoso.

A agonia desse patrimônio arquitetônico e cívico começou há 30 anos, com a concentração de dependentes químicos na região. O colégio chegou a abrigar mais de 3 mil alunos em todas as faixas de ensino. Hoje, são menos de 200, reduzidos ao fundamental. “A situação do bairro está muito difícil, cada dia mais inseguro”, declarou uma mãe à Folha de S.Paulo. “Era uma extensão da nossa casa, da nossa família”, disse outra.

Por décadas os prefeitos se sucedem, instituições fogem da região, edifícios apodrecem – só não muda a Cracolândia.

Ninguém espera soluções mágicas. A desgraça tem raízes profundas e complexas, entrelaçando famílias desestruturadas, miséria social, transtornos mentais e narcotráfico. Não faltaram ações voltadas a cada uma dessas mazelas. O que faltou foi uma ação coordenada, uma política de longo prazo que combine a cooperação das três esferas de governo, a Justiça e associações sociais e médicas para articular, de maneira orgânica, assistência social, atendimento clínico, repressão ao tráfico e reurbanização.

Muito da descoordenação reflete dogmatismos ideológicos. A tendência, à direita, de reduzir os dependentes a criminosos levou a ações policiais tão espetaculosas quanto inócuas. Da tendência à esquerda de reduzi-los a vítimas sociais já correram torrentes de eloquência humanitária e programas de transferência de renda, redução de danos e descriminalização, mas que, sem atacar a raiz do mal, foram igualmente inócuos.

Certamente essas pessoas incorrem em delitos e perturbam a ordem pública; certamente são miseráveis. Mas, mais do que “delinquentes” ou “sem-teto”, são doentes. A segurança pública é necessária. A assistência social é necessária. Mas são paliativos se não acompanhados de programas ostensivos de recuperação. Isso envolve mais gastos públicos do que muitos “liberais” estão dispostos a admitir, mas também medidas excepcionais – como compromissos de abstinência ou, em casos severos, internação compulsória – que escandalizam tantos “progressistas”.

Aos nove anos, João Bosco sonhou que estava no meio de jovens que se transformavam em feras, e, em seguida, em animais mansos. Por 137 anos o Coração de Jesus não poupou esforços para tornar esse sonho realidade, sobrevivendo até a bombardeios na Revolta Paulista de 1924. Diferentemente de outras escolas que migraram dos Campos Elíseos, nunca abandonou seu posto avançado em meio a um inferno crescente. Agora o sonho morreu. As feras venceram.

Ou não. Dias após o anúncio do encerramento, a Prefeitura se comprometeu a subsidiar 200 novas matrículas. Esse novo alento pode ser um recomeço, como um grão de mostarda, a menor das sementes, que se torna a maior das árvores. Mas, se nossa geração não for melhor que as anteriores na missão de ressuscitar para a vida civil as almas perdidas na Cracolândia, será só o último suspiro.