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A incrível CPI que já começa em pizza

Além de desrespeitar o eleitor e descumprir a Constituição, adiar a CPI do MEC para depois das eleições condena Senado à irrelevância. A transparência e a democracia se ressentem

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Por Notas & Informações
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No Brasil, costuma-se dizer que Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) quase sempre “acabam em pizza” – uma expressão popular que traduz o ceticismo sobre a punição dos responsáveis pelos malfeitos investigados. Pois desta vez o Senado se superou: criou uma CPI que já começa em pizza.

Na terça-feira passada, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), anunciou que a CPI para investigar as denúncias de corrupção envolvendo o Ministério da Educação (MEC) só será instalada após as eleições. O anúncio é um deboche. Rodrigo Pacheco reconhece que os requisitos constitucionais para a abertura da investigação foram preenchidos, mas considera que o País só deve ter acesso ao que de fato acontece no governo de Jair Bolsonaro depois das eleições.

São tempos realmente estranhos. O presidente do Senado, que deveria defender as prerrogativas da Casa Legislativa, faz de tudo para tornar irrelevantes os trabalhos investigativos da própria Casa que preside. A importância da CPI do MEC está precisamente em expor ao País o que acontece na administração federal antes das eleições, para que o eleitor possa dispor de mais elementos na hora de decidir o voto.

Pelo que se vê, há no Senado uma grande incompreensão a respeito do funcionamento de um Estado Democrático de Direito. A função investigativa do Poder Legislativo não é uma tarefa burocrática que pode ser adiada sem maiores consequências. O regime democrático demanda transparência sobre os atos públicos. Caso contrário, a escolha do eleitor é feita a partir de informações limitadas e parciais, o que contradiz radicalmente a ideia de democracia.

Assim, transparência e controle são fundamentais para o bom funcionamento do regime democrático. E é precisamente por isso que as Constituições democráticas atribuem ao Poder Legislativo não apenas a tarefa de fazer leis, mas também a de investigar. Trata-se do reconhecimento de que, numa democracia, o trabalho de investigação tem uma dimensão política essencial: desvelar ao público o que está oculto nas entranhas do poder estatal. No entanto, Rodrigo Pacheco quer despir os trabalhos do Senado dessa dimensão democrática, postergando-os para depois das eleições. Deseja que esses trabalhos sejam rigorosamente um zero à esquerda para o eleitor.

A decisão de postergar a CPI do MEC é, portanto, afronta ao próprio Senado, envolvendo não apenas a omissão de suas atribuições constitucionais, mas a deliberada escolha pela irrelevância da Casa Legislativa num assunto de importância decisiva para o País. Não há como ignorar: o País já tomou conhecimento, por meio do trabalho da imprensa, das graves suspeitas envolvendo o mau uso de recursos públicos destinados à educação. O adiamento da CPI não tira o tema de pauta. Apenas apequena a Casa Legislativa.

Além disso, ao não instaurar uma CPI cujos requisitos constitucionais foram preenchidos, Rodrigo Pacheco descumpre o art. 58, § 3.º da Constituição e a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto. No ano passado, o plenário da Corte, ante a recalcitrância de Pacheco, mandou instalar a CPI da Covid. Agora, o presidente do Senado tenta uma manobra. “Os requerimentos serão lidos em plenário por dever constitucional e questões procedimentais serão decididas”, disse Pacheco em sua conta no Twitter, mas alertou que nada além disso será feito. Parece até que a Constituição se ocupa de passos burocráticos, e não da efetiva instauração da investigação.

Tudo isso é sumamente constrangedor. Dispondo de todas as condições para ser autônoma, a Casa Legislativa escolheu ser servil ao Palácio do Planalto, sob a desculpa esfarrapada de que, nas palavras de Pacheco, a investigação da CPI pode ser “contaminada” pela disputa eleitoral. Ora, esse mesmo Senado não viu problema nenhum em aprovar, a menos de cem dias das eleições, a “PEC do Desespero”, uma Proposta de Emenda Constitucional escandalosamente inconstitucional e eleitoreira desenhada para permitir que o presidente Bolsonaro compre votos para tentar reverter sua situação difícil nas pesquisas. O Senado, definitivamente, já teve dias melhores.