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A indignidade do trabalho infantil

Quase 2 milhões de crianças e adolescentes estavam expostos a atividades laborais danosas em 2022, um retrocesso inaceitável que expõe a omissão do poder público em várias dimensões

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Por Notas & Informações
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Em sua mais recente pesquisa sobre o trabalho infantil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) expôs a cruel e vexaminosa omissão do poder público diante de uma parcela expressiva de crianças e adolescentes. Mais de 1,9 milhão de brasileiros de 5 a 17 anos – 4,9% dessa faixa etária – exerceram atividades laborais em 2022, em prejuízo de seu desenvolvimento, de sua saúde e de sua escolarização. Desse universo, 756 mil estavam sujeitos às “piores formas de trabalho”, proibidas desde 2008 pelo Decreto 6.481. A estatística não poderia ser mais brutal e menos ofensiva ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Um único caso já seria motivo para preocupação e alerta às autoridades públicas. Quase 2 milhões é uma ofensa de múltiplas dimensões.

Os dados da Pnad Contínua do IBGE indicam a debilidade da aplicação da legislação brasileira e a ausência de políticas públicas efetivas para reverter acentuadamente um quadro que não condiz de nenhuma maneira com um país que se pretende desenvolvido. Ao iniciar a pesquisa, em 2016, o instituto constatou que 5,2% das crianças e adolescentes trabalhavam em condições não autorizadas pela lei. Houve recuo lento e gradual até 2019, quando esse universo baixou para 4,5% – ainda assim, inaceitável. Nos dois anos de pandemia, as estatísticas foram suspensas. Uma vez retomadas, verificou-se que, no último ano de mandato de Jair Bolsonaro, o Brasil retrocedeu ao patamar de 2017.

Não chega a causar surpresa a piora do trabalho infantil ao longo de uma gestão federal disruptiva tanto no enfrentamento da crise sanitária como na redução de níveis de pobreza e de desigualdade social e no impulso do ensino fundamental. A recente pesquisa do IBGE, no entanto, expõe o grau extremo de irresponsabilidade social e de desleixo bolsonarista com as futuras gerações. As provas estatísticas sobre o trabalho infantil somam-se à sua extensa lista de afrontas ao interesse nacional.

Nos detalhes, as estatísticas do IBGE revelam um contexto ainda mais grave. Mostram que, de 2019 a 2022, enquanto a população brasileira de 5 a 17 anos recuava 1,4%, mais 100 mil crianças e adolescentes, em sua maioria pretos e pardos, foram incorporados ao mercado de trabalho ou a atividades para consumo próprio – ambas não consentidas pela legislação. Dos estudantes nessa faixa etária, 87,9% foram enquadrados no conceito aceito internacionalmente de trabalho infantil. Receberam salários quase um terço menor do que ganhavam aqueles que haviam concluído ou abandonado os estudos. Ou seja, o mercado laboral para essa faixa incentiva a evasão escolar. Também replica os costumes consagrados no mercado de trabalho dos adultos: meninas receberam menos do que meninos; pretos e pardos, menos do que os brancos.

Igualmente avilta os direitos da criança e do adolescente o fato de que 449 mil, na faixa entre 5 e 13 anos de idade, exerceram atividades econômicas no ano passado e até mesmo as piores formas de trabalho – todas proibidas, em razão dos sérios perigos envolvidos. É certo que mais da metade dos brasileiros enquadrados nos critérios de trabalho infantil está na faixa de 16 a 17 anos. Tampouco se esperaria desses 988 mil adolescentes mais do que a conclusão do ensino médio, a possível adesão ao programa Jovem Aprendiz e trabalhos domésticos sem riscos. Para a maioria deles, no entanto, o caminho é outro: a informalidade, em geral longe da lei.

Pode-se até entender que parte das famílias vulneráveis ainda veja suas crianças e adolescentes como pequenos adultos. Por mais baixa que seja a idade, segundo essa lógica de sobrevivência, estariam aptos a trazer os rendimentos de seu trabalho para o lar. Mas não há como desculpar o poder público, a quem cabe adotar políticas públicas voltadas à melhoria das condições de vida dos mais pobres e das perspectivas futuras das atuais crianças e jovens brasileiros. Para crianças e adolescentes, não pode haver brecha para o trabalho espúrio e ilegal. Apenas o digno caminho da educação e da cidadania.