A morte de Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos, durante um confronto entre a Polícia Militar (PM) e suspeitos de envolvimento com o crime na Baixada Santista, simboliza o fracasso de parte das forças de segurança de São Paulo. É intolerável que agentes do Estado coloquem inocentes em risco. Para piorar, segundo as autoridades, tudo indica que o disparo que matou a criança partiu da arma de um policial.
O episódio ocorrido no Morro do São Bento, em Santos, expõe o ciclo vicioso da violência. Ryan foi atingido no abdômen enquanto brincava na rua, foi socorrido e não resistiu. No início deste ano, seu pai também morreu numa ação policial na região. O homem, uma pessoa com deficiência física de 36 anos que usava muletas, teria apontado uma arma para os agentes, segundo os policiais. Trata-se de uma tragédia familiar.
Na recente investida, policiais patrulhavam uma área suspeita de servir ao tráfico quando foram recebidos a tiros por cerca de dez homens. Dois adolescentes foram atingidos; um deles morreu. Uma jovem levou um tiro de raspão. O histórico da região exigia planejamento e prevenção. Foi na Baixada que a Operação Verão deixou 56 mortos no início de 2024. No ano passado, a Operação Escudo, deflagrada após a morte de um policial, registrou 28 óbitos.
Como era de esperar, o caso Ryan gerou reação. Ao participar de uma audiência na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, disse que não faria “palanque político” com a morte do menino, lamentou o caso e afirmou que “nenhum policial” em São Paulo “está feliz”. Não basta lamentar, é seu dever evitar que inocentes sejam vitimados durante intervenções policiais.
A receita para isso está nas boas práticas da PM, nas leis e na Constituição. Basta seguir esses ensinamentos, que foram oportunamente relembrados em nota pública da Ouvidoria da Polícia, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e do Instituto Sou da Paz. Segundo as entidades, “aparentemente, a gestão e os agentes policiais que atuam em locais empobrecidos abandonaram o uso dos protocolos”. Na nota, citaram outros casos de inocentes vitimados em outras ações e pontuaram que a polícia precisa ser capaz de atacar a cúpula do crime organizado, evitando mais violência e mortes. Mas, ao menos em relação às mortes, o que se vê na atual gestão é o inverso.
A PM matou 496 pessoas entre janeiro e setembro deste ano, uma alta de 75% em relação ao mesmo período de 2023, quando houve 283 óbitos. O governo alega que as mortes “são resultado da reação de suspeitos à ação da polícia”. Pode até ser, mas dificilmente a sociedade saberá. Não raras vezes, as imagens das operações policiais não têm sido registradas, seja porque nem todos os batalhões dispõem das câmeras corporais para todos os seus agentes de campo, como é o caso do 6.º Batalhão da PM de Santos, seja porque os próprios policiais as desligam ou usam outros subterfúgios para manter suas condutas ao abrigo de qualquer escrutínio.
Aos suspeitos que fugiram do confronto, o comandante da PM na Baixada, Rogério Nery Machado, promete uma caçada. Segundo ele, “a polícia não vai descansar” enquanto não prendê-los, é uma “questão de honra”. Machado admitiu o risco de escalada da tensão, mas disse que a polícia atua de “maneira técnica e pontual”. Relatos de intimidação no sepultamento de Ryan, no entanto, não confirmam essa orientação.
De acordo com Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP, que esteve no enterro, viaturas estavam presentes na cerimônia e chegaram a dificultar o cortejo. Para ela, não chamou a atenção “a presença da polícia, mas a hostilidade da polícia”. A Secretaria da Segurança Pública afirmou que a PM vai analisar as denúncias de possível intimidação.
Esse caso inadmissível merece investigação rigorosa. É dever da PM proteger a sociedade e enfrentar o crime com protocolo, inteligência e respeito à lei. Nenhum inocente pode pagar pela incompetência ou truculência de alguns agentes. E o combate ao crime se pauta pela legalidade, não pela “honra”.