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A recessão democrática na América Latina

Ao constatar a precária percepção de benefício do Estado de Direito entre os cidadãos da região, a pesquisa Latinobarómetro expõe o risco de avanço do populismo e da via autoritária

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Por Notas & Informações
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Passadas quatro décadas de gradual reforço das instituições e do Estado Democrático de Direito na América Latina, soa no mínimo preocupante o fato de a região atravessar mais de dez anos de “recessão democrática”. A constatação apoia-se nos resultados de pesquisa realizada neste ano em 17 países pelo Latinobarómetro, organização sediada em Santiago, Chile. Não há conforto ao nos inteirarmos que menos da metade (48%) dos latino-americanos consideram a democracia como modelo preferível à via autoritária, apoiada por 17% – ou que, para 28%, pouco importa o regime político do país. O quadro traz grave alerta sobre a vulnerabilidade da região ao populismo e à ascensão de regimes autocráticos.

A base de dados do Latinobarómetro mostra ter havido melhores momentos para a democracia na região, como no início da década passada, quando a preferência por esse regime alcançava 63%. Desde então, segundo a organização, a percepção sobre seus benefícios foi desgastada por crises econômicas, escândalos de corrupção, demandas não atendidas pelos governos e fragilidade do sistema partidário. O estudo A recessão democrática da América Latina atribui boa parte desse descalabro à omissão das elites diante da erosão das instituições e de pressões pela mudança nas regras do jogo – ou a sua atuação intensa em prol desses resultados. Essa visão, obviamente, deve ser considerada, mas está longe de esgotar todos os alvos de responsabilização.

Expressiva é a insatisfação com a democracia, apontada por 69% das 19.205 pessoas consultadas. É certo que houve recuo de três pontos porcentuais nesse universo desde 2018, quando atingiu o recorde de 72%. Mas a magnitude dos insatisfeitos não dá margem para nenhum alento. Sinal menos ruim surge na aversão de 61% a golpes militares – 63% no Brasil. Novamente, não é possível ser otimista quando a pesquisa também mostra que 54% dos latino-americanos não se importariam com um governo não democrático, desde que resolvesse os problemas nacionais.

A preocupação cresce ao se observar o menor engajamento dos jovens na democracia. “Quanto menor a idade, mais autoritários são”, diz o estudo, ao alertar para a diluição dos valores democráticos entre os cidadãos que, na América Latina, enfrentam maiores taxas de desemprego e menores perspectivas de futuro. O apoio às instituições que sustentam o Estado de Direito é declarado por 43% dos latino-americanos de 16 a 25 anos. Nessa faixa, que não chegou a viver o período ditatorial, a opção autoritária tem a preferência de 20%.

No Brasil, a pesquisa foi realizada logo depois dos ataques às sedes dos Três Poderes por uma horda que defendia um golpe militar para derrubar o governo eleito de Lula da Silva. A preferência pelo Estado de Direito manteve-se em 46%, pouco abaixo da média regional, e escalou seis pontos porcentuais em relação ao nível de 2020. Os dados indicam que a percepção foi mais afetada pelos quatro anos de investidas do governo de Jair Bolsonaro contra as instituições do que pelos eventos do 8 de Janeiro.

A opção pela via autoritária cresceu dois pontos porcentuais, para 13% – curiosamente, o mesmo que na Venezuela. O total de brasileiros indiferentes caiu seis pontos, para 30%, um porcentual nada confortável. A pesquisa, porém, traz outro dado preocupante: 43% dos brasileiros concordam com a possibilidade de o governo controlar os meios de comunicação – ou seja, romper um princípio basilar da Constituição.

O estudo do Latinobarómetro de 2023 teve o cuidado de não mergulhar na análise dos regimes ditatoriais da América Latina, embora tenha havido pesquisa na Venezuela. Nicarágua e Cuba foram evitados. Para a organização, o governo de Nayib Bukele, presidente de El Salvador, já rompeu a integridade democrática.

A escolha do termo “recessão”, mais afeito ao léxico econômico, está em linha com o déficit de percepção dos benefícios da democracia por parte expressiva da cidadania. Nada pode ser mais perturbador para a América Latina que as vozes populistas e os desmandos autoritários. É preciso, mais do que nunca, zelar pelo futuro das instituições.