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As Forças Armadas a serviço da Constituição

É constrangedor o STF ter de dizer o óbvio: que as Forças Armadas nem são um Poder nem têm papel moderador. Em outras palavras, não há possibilidade de um ‘golpe constitucional’

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Por Notas & Informações
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Por 6 votos a 0, o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para afastar qualquer interpretação da Constituição que autorize uma intervenção das Forças Armadas sobre os Poderes da República ou que as classifiquem como um “poder moderador” em meio a crises institucionais.

Mais de um ministro manifestou perplexidade ante a necessidade de a Corte afastar, mais de 30 anos após a redemocratização, pretensões há muito sepultadas por todas as democracias sérias do planeta. Chega a ser constrangedor e seria ocioso se a interpretação golpista não tivesse sido gestada e disseminada por um presidente da República, Jair Bolsonaro, com as consequências que todos conhecem: uma multidão de celerados invadindo as sedes dos Três Poderes a fim de suscitar uma intervenção militar.

Mau militar, Bolsonaro se provou um péssimo democrata. No fundo de uma carreira política errática e atrabiliária, houve sempre uma constante fundamental: o inconformismo com o fim da ditadura militar e o revanchismo contra a Constituição de 88, não só em relação à restauração do regime democrático, mas também a propósito de direitos e garantias fundamentais contra o arbítrio, a censura, a repressão e o cerceamento às liberdades civis.

Previsivelmente, o bolsonarismo submeteu as Forças Armadas ao seu maior teste de estresse desde a redemocratização. Inúmeras vezes Bolsonaro se referiu ao Exército como “meu Exército”. Para dar um verniz de legitimidade ao seu voluntarismo, propagou a tese de que as Forças Armadas estariam constitucionalmente autorizadas a intervir em qualquer momento por convocação presidencial e que seriam uma espécie de “poder moderador” autorizado a arbitrar conflitos entre os Poderes.

Desde a dissolução da Assembleia Constituinte de 1823, passando pelo “regime da espada” após a decretação da República, o Estado Novo ou a ditadura militar, a história mostra que as Forças Armadas têm pouca experiência com moderação. A Constituição de 88 estabeleceu em seu art. 142 que elas tampouco são um “Poder”, mas instituições destinadas “à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Como havia dúvida sobre a possibilidade de o emprego das Forças ser determinado diretamente pelo Judiciário ou pelo Legislativo, a Lei Complementar 97/99 regulamentou a competência do presidente da República para acioná-las por iniciativa própria ou a pedido dos outros Poderes. Mas o oportunismo de Bolsonaro gerou a exegese bastarda de que as Forças estariam totalmente submetidas ao arbítrio do presidente da República. A ação movida pelo PDT se voltava justamente a dirimir qualquer controvérsia a propósito da compatibilidade desta lei com a Constituição.

Restou à Corte afirmar o óbvio: que as Forças Armadas são instituições de Estado, não de governo, subordinadas ao poder civil, que tem seus próprios limites constitucionais. Assim, sua missão institucional não admite o exercício de qualquer atuação moderadora entre os Três Poderes; a chefia do Executivo é uma prerrogativa limitada, que não admite o emprego das Forças para cercear a independência dos outros Poderes; e seu emprego para a “garantia da lei e da ordem”, embora não se limite às hipóteses de intervenção federal, de estado de defesa e de estado de sítio, cabe somente, nas palavras do relator, o ministro Luiz Fux, “ao excepcional enfrentamento de grave e concreta violação à segurança pública, em caráter subsidiário, após o esgotamento dos mecanismos ordinários e preferenciais de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. E isso somente com o aval do Congresso.

Ao sepultar a tese natimorta e surreal de um “golpe constitucional”, seria bom que a decisão do STF servisse para lançar uma pá de cal nas tentativas de tramitar uma alteração do artigo 142 da Constituição, um comportamento de risco que só abre margem à instabilidade, controvérsias desnecessárias e eventuais retrocessos. Como diz o bordão, “a regra é clara”. Basta segui-la.