Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Bolsonaro, enfim, é punido

O ex-presidente passou décadas desafiando a democracia impunemente, o que deu ares de legitimidade a seu golpismo; sua inelegibilidade é só o começo de um processo de saneamento

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
2 min de leitura

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tornou Jair Bolsonaro inelegível pelos próximos oito anos. Trata-se de punição constitucional e necessária. Desde a redemocratização do País, ninguém havia tido o despautério de fazer o que Bolsonaro irresponsavelmente fez durante o mandato. De forma reiterada e ignorando seu compromisso de respeitar a Constituição, ele se valeu do cargo de presidente para tumultuar o processo eleitoral.

Bolsonaro nunca teve a intenção de aprimorar o sistema de votação, como alega. Se isso fosse verdade, ele teria, em primeiro lugar, que respeitar a competência do Congresso sobre o tema, e não desautorizar as instituições democráticas legitimamente constituídas, caso da Justiça Eleitoral. Como se sabe, ele fez o oposto, atacando insistentemente o processo eleitoral. O ápice foi a infame reunião de 18 de julho de 2022 com embaixadores estrangeiros.

Alega-se que, no limite, se tratou de genuíno exercício de liberdade de expressão. Ora, como já afirmamos diversas vezes nesta página, a liberdade de expressão não é um direito absoluto, sobretudo quando o propósito de quem se expressa não é o de dar uma opinião, e sim o de violentar a democracia. O leitmotiv evidente de Bolsonaro, coerente com toda a sua trajetória política, era o de disseminar a desconfiança nas urnas e gerar instabilidade no País, criando as condições para um eventual golpe. Felizmente, as instituições reagiram e, dentro da mais rigorosa legalidade, declararam o óbvio: quem afronta a democracia de tal forma deve ser impedido de se candidatar a cargo eletivo.

A inelegibilidade de Bolsonaro é medida justa e necessária, mas é preciso reconhecer: ela deveria ter vindo muitos anos antes. Há décadas o sr. Bolsonaro viola as regras básicas do regime democrático. Como deputado federal, ele quebrou várias vezes o decoro parlamentar e nunca respeitou a diversidade de opinião. Em um de seus arroubos, chegou a defender o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, ocasião em que este jornal exigiu sua cassação (ver o editorial Dejetos da democracia, de 8/1/2000).

A Constituição de 1988 fixou o critério: “É incompatível com o decoro parlamentar (...) o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional”. Sob pretexto da inviolabilidade civil e penal por opiniões, palavras e votos do art. 53 da Constituição, Bolsonaro falou durante anos as maiores barbaridades, sem a mínima consideração pelos limites da lei, o respeito ao outro ou os parâmetros da civilidade. Infelizmente, o Congresso omitiu-se em seu dever constitucional de retirar seu mandato. Ante a impunidade, Bolsonaro julgou-se autorizado a abusos cada vez maiores.

A inelegibilidade de Bolsonaro, portanto, se presta a proteger o regime democrático, mas as mais de três décadas de bolsonarismo impune deixaram como sua principal herança maldita a transformação do golpismo em discurso supostamente legítimo. Antes da ascensão de Bolsonaro ao poder, eram marginais e inexpressivas as manifestações públicas em defesa da volta das Forças Armadas ao poder, fantasma autoritário que parecia bem enterrado pela Constituição de 1988. No entanto, os quatro anos de Bolsonaro na Presidência deram verniz de legitimidade à hermenêutica golpista da Constituição, aquela que vê como legal a convocação de militares para intervir no Estado. A agitação sediciosa na frente dos quartéis e o assalto às sedes dos Três Poderes no 8 de Janeiro, bem como a eleição de muitos parlamentares simpáticos a uma ruptura democrática, são a prova incontestável do retrocesso causado pelo bolsonarismo.

Assim, a inelegibilidade de Bolsonaro, obviamente tardia, é apenas o começo de um longo processo de saneamento da política, absolutamente necessário diante da constatação de que o ex-presidente, malgrado ter sido um mau militar e um mau político, continua a ser considerado por muita gente como um potente cabo eleitoral. Ou seja, para evitar a recidiva autoritária, que costuma ser muito pior que a doença, a democracia precisa ter a capacidade de expurgar quem pretende destruí-la – e para isso nada mais poderoso do que seguir rigorosamente o que está na lei.