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Cheiro de manobra fiscal no ar

Há formas e formas de propor políticas públicas para reduzir a evasão no ensino médio. Bolsas são meritórias, mas não devem ser razão para o governo Lula reeditar a contabilidade criativa

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Por Notas & Informações
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O governo Lula da Silva editou uma medida provisória que cria um programa de bolsas para incentivar alunos de baixa renda a concluírem o ensino médio. A proposta é meritória, sem sombra de dúvidas, haja vista os elevados índices de evasão e abandono escolar registrados no ensino público, especialmente entre jovens vulneráveis.

Um estudo do Serviço Social da Indústria no Rio de Janeiro (Firjan Sesi), realizado em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), constatou que 500 mil jovens acima dos 16 anos desistem dos estudos anualmente. A probabilidade de que um jovem na faixa dos 20% mais pobres termine o ensino médio é de apenas 45%, ante 94% entre os 20% mais ricos.

A evasão tem múltiplas causas, mas aumenta muito no primeiro ano do ensino médio. Fica claro, portanto, que os jovens que chegam até essa etapa precisam de incentivo para não abandoná-la. Concluir o ensino médio não é garantia de condições de vida melhores, mas certamente torna a mobilidade social um pouco menos desafiadora.

Dito isso, há formas e formas de propor políticas públicas para solucionar um mesmo problema. E o governo não escolheu a melhor delas. Em vez de inserir o programa no Orçamento e tratá-lo com a prioridade e a transparência que ele requer, o Executivo optou por criar um fundo privado para financiar as bolsas. Administrado pela Caixa, ele receberá até R$ 20 bilhões em aportes da União, ações de estatais e recursos arrecadados em leilões de petróleo.

O governo se limitou a publicar a medida provisória que cria o programa em edição extra do Diário Oficial da União. Não detalhou como o fundo será gerido, quanto pretende aportar neste ano e se esses recursos serão contabilizados dentro ou fora do limite de despesas. Mas o Senado respondeu a todas essas questões ao aprovar um projeto de lei complementar nesta semana. Serão R$ 6 bilhões neste ano fora do limite de gastos, na primeira deturpação no arcabouço fiscal.

Supõe-se que Lula da Silva decidiu cumprir a promessa de campanha que garantiu a ele o apoio da então candidata Simone Tebet no segundo turno da eleição. Mas o programa de bolsas defendido pela atual ministra do Planejamento tinha como base o Projeto de Lei de Responsabilidade Social (PL 5343/2020), do ex-senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).

Parece a mesma coisa, mas não é. Em vez de um fundo privado, a proposta do ex-senador mantinha tudo dentro do Orçamento, com total observância das metas fiscais. Os benefícios teriam múltiplas fontes de financiamento, entre as quais recursos de emendas parlamentares. O projeto previa, também, o corte de subsídios para abrir espaço para o programa no Orçamento. Isso demanda tempo para debate e negociação – tudo que uma medida provisória não oferece.

O ex-senador nunca escondeu que sua fonte de inspiração era uma proposta dos economistas Fernando Veloso, Marcos Mendes e Vinícius Botelho, publicada pelo Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP). É justamente por essa razão que não se deve ignorar a crítica de Marcos Mendes à iniciativa do governo, uma desfiguração da ideia original das bolsas.

Em entrevista ao Estadão, Mendes questionou a sistemática do fundo e a forma como o benefício será financiado. “Isso tem nome: se chama contabilidade criativa, despesa extraorçamentária, política parafiscal. Esse filme a gente já viu”, disse.

A baixa escolaridade está na origem de muitos outros obstáculos que se interpõem na passagem da infância e adolescência para a vida adulta. Dificulta a inserção no mercado de trabalho, empurra os jovens para a informalidade, impõe rendimentos menores e não proporciona uma rede de proteção social.

Por tudo isso, enfrentar a evasão no ensino médio é urgente. É algo que beneficiará não apenas os jovens vulneráveis, mas toda a sociedade brasileira. Reconhecer um grave problema social, no entanto, requer escolhas, ou seja, criar condições para custeá-lo no Orçamento sem recorrer a manobras e atropelar as regras fiscais. Essa alternativa sinaliza a escolha de um caminho perigoso, e o País sabe onde ele termina.