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Constituinte não é guerra cultural

O processo constitucional chileno, malgrado ter fracassado depois de cinco eleições, deixou lições valiosas: Constituições devem refletir um pacto possível, e não utopias ideológicas

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Por Notas & Informações
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A refundação constitucional chilena fracassou. Em quatro anos, os chilenos promoveram cinco eleições. Primeiro, em favor de uma nova Constituição. Por duas vezes criaram uma Assembleia Constituinte e por duas vezes rechaçaram suas propostas. Perdeu a direita, que recebera um mandato na última Constituinte. Perdeu a esquerda, que deflagrou o processo em 2019, teve sua chance na primeira Assembleia e agora, ironicamente, votou pela manutenção da Constituição legada pelo ditador Augusto Pinochet. Perdeu a classe política, que saiu desmoralizada. Perdeu o povo: desde 2019, não só os problemas que motivaram o movimento constitucional – como desigualdades na previdência ou saúde – não foram solucionados, como outros – como desaceleração econômica, crise migratória e violência – se somaram.

Uma terceira rodada está descartada. Segundo uma pesquisa da consultoria Cadem, o sentimento predominante em relação à recriação constitucional é “uma perda de tempo”. Será? Tudo depende de saber se as lições – importantes não só para o Chile, mas para as democracias – serão aprendidas.

Uma dessas lições diz respeito à forma e ao procedimento. Segundo os cientistas políticos americanos Z. Elkins e A. Hudson, desde 1789 as democracias aprovaram 94% dos 179 referendos constitucionais. Mas nos sistemas políticos contemporâneos é preciso perguntar até que ponto plebiscitos e referendos são adequados para decidir questões complexas. No caso do Chile, a coisa se complicou porque, ao invés de uma proposta de Constituição clara e sucinta, fixando direitos fundamentais e regras gerais para o funcionamento do Estado, esquerda e direita tentaram constitucionalizar regras que seriam mais bem encaminhadas nas disputas políticas ordinárias.

Isso leva à segunda lição, sobre o conteúdo. A primeira Constituinte foi dominada por políticos radicais e independentes sem disciplina partidária. O resultado foi uma lista de desejos progressistas utópica e prolixa. Na segunda Assembleia, correções foram feitas: concordou-se preliminarmente com 12 princípios a serem mantidos por qualquer carta, reduziu-se a margem para independentes e foi concertada uma comissão de juristas de todo o espectro político para redigir um texto preliminar. Mas ele foi desfigurado pela nova direita, que embutiu regras pró-mercado controversas e princípios moralistas.

Guerras culturais, revanchismos partidários e sua arma, a desinformação, intoxicaram o processo. Além do ônus do atraso nas reformas e políticas públicas, há o risco de que o descrédito no processo democrático convide a aventuras autoritárias.

E agora? Em primeiro lugar, o anseio por mudanças constitucionais não desapareceu. Mas elas precisarão ser realizadas gradualmente. Antes, o Chile precisa enfrentar insatisfações que independem da Constituição, como segurança, educação e mesmo a crise do sistema privado de saúde.

Para tanto, governo e oposição precisam flexibilizar suas atitudes. Os chilenos disseram “não” aos tribalismos de esquerda e de direita. O Chile possui um capital importante: a seriedade de suas elites políticas e a capacidade de gerar consensos. Esse capital, o segredo da Concertación, não era ótimo, mas era bom, e, após ser dilapidado, precisa ser resgatado e aprimorado com realismo.

Como disse o sociólogo Eugenio Tironi: “Nós chilenos saímos desta experiência constitucional como se sai muitas vezes da terapia: aceitando que o processo foi mais amplo do que o previsto, com a sensação de não ter descoberto a pedra filosofal, mas mais conformados com a vida que nos cabe viver”.

Há um ponto positivo no processo. A violência política, que há 50 anos – primeiro com autoritarismo esquerdista, depois com o direitista – deixou feridas profundas, parecia em 2019 estar sendo de novo validada. Mas, ao fim, tanto a euforia quanto o fracasso constitucional foram vivenciados pelos militantes de ambos os lados, se não com o respeito e a maturidade que o momento exigia, em paz. A paz não é condição suficiente para o consenso, mas é indispensável, e mantê-la é a primeira tarefa dos chilenos para que possam viver a vida que lhes cabe viver.