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Contra os vivos e os mortos

Não surpreende que a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos seja extinta ao final do governo Bolsonaro

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Por Notas & Informações
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A insistência e o momento escolhido para acabar com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) confirmam que o governo do presidente Jair Bolsonaro é rancoroso, ideológico e negacionista da própria história. Como antecipou o Estadão, o fim da comissão foi aprovado na última quinta-feira, em decisão tomada por seus integrantes, por 4 votos a 3.

Com maioria no órgão, o governo pretendia extingui-lo em junho, mas recuou diante de contestação do Ministério Público Federal (MPF). Nos últimos dias, mais uma vez, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) reiterou recomendação contrária ao encerramento, mas de nada adiantou. A duas semanas do término do mandato de Bolsonaro, a decisão foi sacramentada. Um erro.

A comissão, prevista na Constituição, foi criada pela Lei 9.140/1995, logo no primeiro ano de governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso. O objetivo era dar reconhecimento oficial a pessoas que morreram ou desapareceram por causa de sua atuação política durante a ditadura militar. Entre as tarefas da comissão estavam a emissão de atestados de óbito para parentes das vítimas, a localização de corpos e a reparação por meio de indenizações.

Os trabalhos do órgão contribuíram para o esclarecimento de dezenas de crimes, entre os quais o do então deputado federal Rubens Paiva, torturado e morto em 1971, sem que seu corpo tenha sido localizado. Ossadas de outros cinco desaparecidos políticos foram identificadas em uma vala comum do Cemitério de Perus, em São Paulo.

Por óbvio, a comissão não haveria de existir para sempre, e a própria lei que a criou previu o seu fim, mas só depois de concluídas as suas atribuições. Como bem lembrou a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, isso ainda não ocorreu, uma vez que existem casos pendentes. Ou seja, há trabalho por fazer. O mesmo foi dito, em junho, pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em artigo na Folha, juntamente com os ex-ministros da Justiça Nelson Jobim e José Gregori, além do ex-secretário de Estado de Direitos Humanos Paulo Sérgio Pinheiro. Segundo eles, a comissão ainda estava “longe de concluir sua missão legal”.

Ora, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos é parte do esforço de responsabilização do Estado brasileiro pelas inúmeras violações de direitos praticadas na ditadura – algo necessário e minimamente reparador, considerando os efeitos da Lei de Anistia, de 1979, fundamental para a transição pacífica da ditadura para a democracia.

É isso que Bolsonaro não aceita e daí seu empenho em pôr fim à comissão, nem que fosse nos estertores de seu mandato. Vale lembrar que uma alteração no regimento interno do órgão, em 2020, já havia restringido a sua atuação, até mesmo no que diz respeito à emissão de atestados de óbito. Nesse sentido, pode-se afirmar, sem medo de errar, que Bolsonaro não surpreendeu ninguém. O presidente fez exatamente o que dele se esperava, sendo ele alguém que já foi capaz de louvar, pública e reiteradamente, um torturador.