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Professor de Filosofia na UFRGS, Denis Lerrer Rosenfield escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Contradições da esquerda

O PT no poder esteve e está imerso em dilemas semelhantes aos da social-democracia alemã no final do século 19 e nas primeiras décadas do século 20

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A social-democracia alemã, no final do século 19 e nas primeiras décadas do século 20, era um partido marxista inserido numa sociedade capitalista que se desenvolvia rapidamente, graças à indústria têxtil e, depois, à mineração e à metalurgia. Na perspectiva marxista, sua finalidade última (Endziel) era a implantação de uma sociedade comunista, baseada nos avanços da “luta de classes”, tendo como desfecho a revolução, identificada à salvação da Alemanha e da humanidade enquanto tal. No entanto, tal formulação era de pouca valia na condução dos assuntos corriqueiros e práticos do partido, que tinha se tornado uma grande organização, baseada em sindicatos fortes, com uma folha expressiva de salários e tendo suas próprias empresas, das quais extraía lucro.

Politicamente, propugnava pelo sufrágio universal, pela defesa da democracia, pela liberdade de imprensa (o partido era proprietário de vários jornais importantes) e por constituir uma forte representação parlamentar. Em seu combate social, estava voltado para a consolidação da previdência para os trabalhadores (implantada por Bismarck), melhores salários, redução da jornada de trabalho, entre outras medidas de melhorias sociais. Acontece, porém, que havia uma contradição evidente entre a narrativa marxista, com seus objetivos revolucionários, e a prática do partido, que era essencialmente reformista, voltada para uma luta no interior da sociedade capitalista.

O secretário-geral do partido, August Bebel, um homem pragmático, procurava equilibrar-se entre a retórica marxista e uma prática dela distante. Na sua ala mais à esquerda estava Rosa Luxemburgo, de pouca influência no aparelho partidário, pregando a revolução e o levante de massas do proletariado. Em sua ala mais à direita estava Eduard Bernstein, companheiro de Engels no final de sua vida e homem atento às mudanças em curso na economia, na sociedade e na política. Foi o grande teórico reformista de sua época, rompendo com a revolução e o marxismo, e propugnando pelo reconhecimento teórico da prática social-democrata. Quase terminou, por isso, expulso do partido, e não o foi graças à intervenção de Bebel e de Victor Adler, líder da social-democracia austríaca. Aliás, Bernstein foi a grande orientação da social-democracia alemã do pós-guerra, tendo sido uma figura emblemática para Willy Brandt, depois chanceler da Alemanha.

O PT no poder esteve e está imerso em contradições e dilemas semelhantes. Em seu primeiro mandato, Lula adotou uma prática reformista, seguindo as regras de uma economia de mercado, seguindo os passos de seu antecessor Fernando Henrique Cardoso. Sem dizê-lo, filiava-se à mesma linha social-democrata. Ampliou os programas sociais, tendo sempre em vista a melhoria das condições dos trabalhadores e dos desempregados. Contudo, a retórica esquerdista continuava. O MST funcionava como seu braço revolucionário, desrespeitando propriedades privadas e as invadindo. Teoricamente, essa organização auxiliar do PT fundava-se na “luta de classes”, combatendo por uma sociedade comunista.

O partido ainda se baseava na consideração da democracia não como valor universal, mas como instrumental na conquista do poder. O namoro com ditaduras de esquerda continuou – e continua –, tendo se traduzido, inclusive, pelo apoio explícito ao Foro de São Paulo, organização internacional dos partidos de esquerda, de orientação comunista. Note-se que essa filiação foi negada na campanha eleitoral de então. A política externa prosseguiu, portanto, nessa mesma linha, obedecendo a diretrizes anti-imperialistas, a saber, antiamericanas.

Agora, Lula enfrenta sérias dificuldades em se reconhecer plenamente em sua prática reformista. Considera qualquer regra de mercado um entrave para seus objetivos políticos, advogando pela irresponsabilidade fiscal e fazendo troça acerca de qualquer medida de saneamento das contas públicas. Em consequência, ataca sistematicamente o Banco Central. É como se uma economia de mercado fosse para ele algo completamente alheio, coisa da Faria Lima, como se uma sociedade capitalista fosse uma mera conspiração nacional de grandes empresários e banqueiros. No momento oportuno, pensa negociar com eles, seja lá o que isso signifique.

A demagogia esquerdista exacerba-se em razão de suas contradições, que se traduzem pela falta de medidas governamentais. O MST, enquanto braço revolucionário, retoma suas invasões, consideradas meios de sua luta política. A política externa acompanha o mesmo curso, com forte retórica antiamericana (anti-imperialista), alinhando-se com a China comunista e a Rússia, herdeira do stalinismo. A neutralidade diplomática se perde nas brumas dessa aliança, relegando o País à posição de mero coadjuvante. Chega-se à mais absurda das incoerências ao equalizar a Ucrânia e a Rússia como responsáveis pela guerra. A potência invasora e o Estado invadido, ou, em outra linguagem, o criminoso e sua vítima são igualmente culpados.

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PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR

Opinião por Denis Lerrer Rosenfield

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