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Desconfiança ampla, geral e irrestrita

Poderes não servem bem ao País quando calibram suas atribuições pelo cálculo em disputa por protagonismo que até pode lhes render vitórias pontuais, mas derrota toda a sociedade

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Por Notas & Informações
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A provável alteração de entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o foro especial por prerrogativa de função, o chamado “foro privilegiado”, deve resultar na extensão da jurisdição do STF sobre crimes praticados por agentes políticos, notadamente parlamentares, durante o exercício de sua função. Mesmo que seja outro o desfecho desse julgamento, a iniciativa do Tribunal e o momento em que a adota dão mostra da desconfiança que preside as relações entre Supremo e Congresso; desconfiança que, de resto, permeia a sociedade brasileira em seus mais diferentes âmbitos nos últimos tempos.

No aludido julgamento, o ministro Gilmar Mendes sustenta que o agente político com foro no STF deve ser julgado ali inclusive depois da sua saída do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal correspondente sejam iniciados após o fim do mandato. Isso só não será assim no caso de crime praticado antes da investidura no cargo ou que não possua relação com o exercício dele. O voto de Mendes já conta com a adesão de quatro ministros do Tribunal.

Esse novo entendimento sobre o foro, como já destacado neste espaço, altera a posição adotada pelo Supremo apenas seis anos atrás. Na ocasião, o Tribunal também concluiu que apenas os crimes cometidos por certas autoridades durante o mandato e relacionados ao exercício do cargo poderiam ser julgados pela Corte. A diferença é que, para o Supremo de 2018, ao fim do mandato da autoridade envolvida, seu processo deveria ser remetido à instância competente. Agora, a confirmar-se a posição de Mendes, o processo fica no Supremo.

Em seu voto, o ministro elenca argumentos de fato e de direito justificadores da mudança proposta. O que não aparece no voto, mas paira sobre a iminente decisão do Tribunal, é a disputa que opõe o STF a parlamentares descontentes seja com decisões específicas da Corte, seja com o protagonismo assumido por ela nos últimos anos. Dessa disputa já derivaram tanto a oportuna PEC 8/21, que limita decisões individuais dos tribunais contra atos legislativos, quanto a bizarra PEC 50/23, que pretende conferir ao Congresso o poder de anular decisões do Tribunal, violando a separação dos Poderes. A Corte, agora, parece contra-atacar atribuindo a si o julgamento de parlamentares mesmo após a saída do cargo. Como se vê, entre STF e Congresso reina a desconfiança.

Desconfiança que também parece inspirar a conduta do Tribunal nos intermináveis inquéritos das fake news e das “milícias digitais”. Por meio desses inquéritos, o STF se arvora em juízo universal da defesa da democracia, concentrando em si o julgamento das mais variadas condutas e de um sem-número de agentes, com ou sem mandato. Assim, o Tribunal sinaliza sua desconfiança das instâncias judiciais ordinárias.

E não é só nas relações entre instituições que a desconfiança vem reinando. Ela aparece, há tempos, na visão da população sobre suas elites. A novidade é que, depois do 8 de Janeiro, também as elites têm nutrido a desconfiança, se não temor, da população.

O fenômeno atravessa ainda outras esferas da vida social. Foi o que vimos na pandemia de covid-19, quando uma parcela expressiva da nossa população revelou toda sua desconfiança quanto à eficácia das vacinas produzidas ao redor do mundo, quanto às informações divulgadas pela imprensa profissional sobre a pandemia e quanto às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) a respeito. Foi também o que constatou o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em relatório de 2022. Ali, o BID apurou que, na América Latina e Caribe, o Brasil é o país onde há menos confiança, isto é, menos “fé nos outros – em sua honestidade, confiabilidade e boa vontade”.

Onde há desconfiança, falta colaboração e sobra intolerância. No canteiro de desinformação e ódio das redes sociais, doses cavalares de desconfiança são administradas dia a dia, inclusive por nossos representantes políticos. E não será uma lei ou uma campanha publicitária oficial que, num passe de mágica, produzirá níveis maiores de confiança entre nós. A política pouco pode fazer para elevar esses níveis. Que ela ao menos pare de agir para reduzi-los ainda mais.