Ao restabelecerem o pagamento das emendas parlamentares definidas no Congresso, fixando ressalvas e critérios exigentes para a liberação dos bilionários recursos orçamentários da União, o ministro Flávio Dino e todos os seus pares do Supremo Tribunal Federal (STF) corrigiram uma distorção institucional. Frearam, pelo menos até resposta em contrário do Congresso, o apetite sem controle e sem transparência que avança sobre o Orçamento público, uma espécie de poder paralelo à margem de qualquer escrutínio republicano, o que, nos últimos anos, deu à cúpula do Legislativo força política e poder discricionário sem precedentes na história. Noves fora a correção da medida, relatada por Dino – claramente o principal representante do presidente Lula da Silva no STF, algo por si só uma aberração –, a Corte mostrou também que, no País das anomalias institucionais, distorção se corrige com outra distorção.
O episódio reafirmou a disfuncionalidade com ares de normalidade: um Executivo que transfere para o Judiciário o enfrentamento político com o Legislativo; um Judiciário que é simultaneamente tribunal constitucional, legislador e fiador da governabilidade; e um Legislativo que, tendo descoberto nas artimanhas do Orçamento sua emancipação em relação ao Executivo, adota o tensionamento da convivência entre os Poderes como arma de negociação. As digitais desse distúrbio institucional aparecem também num governo que gere mal sua desarrumada base política e não sabe o que fazer com a nova dinâmica do chamado presidencialismo de coalizão; um STF que se empolgou em demasia com a condição de “vanguarda iluminista” (na definição do ministro Luís Roberto Barroso) e de “bastião da democracia” (na convicção de Alexandre de Moraes); e um Congresso poderoso e fragmentado, hostil ao governo e agastado com o ativismo do STF.
O resultado é um sistema disfuncional, ilegal e impróprio, em que os Poderes passam a exercer prerrogativas não previstas na Constituição, que extravasam o tradicional sistema de pesos e contrapesos, desvirtuam o propósito de cada um e geram incerteza e insegurança. Os riscos impostos à democracia podem até ser distribuídos uniformemente, mas entre a malandragem de um Congresso insaciável e as metamorfoses de um Lula da Silva concentrado na sobrevivência política, parece inevitável um destaque especial ao STF – a quem caberia zelar pelos devidos preceitos constitucionais. Seus ministros, ao contrário, parecem confortáveis no papel de conselheiros extraconstitucionais do Estado, que atuam como uma espécie de notáveis da República, convocados a promover a resolução dos conflitos entre os Poderes, negociar a implementação das próprias decisões e supostamente aperfeiçoar políticas públicas, muitas vezes à custa da usurpação de competências.
Atos como o de Flávio Dino em relação às emendas parlamentares são parte desse conforto misturado com a vaidade. Não foi o único caso, contudo, em que o governo se escorou no STF como seu braço de sustentação política. Em setembro, coube a Dino, monocraticamente, “autorizar” a abertura de créditos extraordinários que permitiram ao governo combater as queimadas sem precisar passar pela tarefa de negociar com o Congresso e sem afrontar o já maltratado arcabouço fiscal. Foi inspirado no mesmo espírito de “inovação” que o ministro Gilmar Mendes converteu o STF em câmara de conciliação, reunindo atores políticos e partes litigantes para discutir a Lei do Marco Temporal. Ou o que dizer do afã legiferante da Corte em temas como a responsabilização das plataformas digitais – não satisfeitos em decidir ou não sobre a constitucionalidade de determinados artigos do Marco Civil da Internet, cujo julgamento foi iniciado em novembro, ministros como Dias Toffoli e Alexandre de Moraes já se apressaram em sugerir mudanças nas normas em vigor.
Tudo parece normalizado e aceitável para quem concorda com tais decisões ou acredita nas suas boas intenções, aquelas das quais o inferno está cheio. Só parece. Convém lembrar-lhes, porém, o risco dos precedentes. O que hoje é remédio pode, adiante, transformar-se em veneno, benfazejos de hoje poderão virar agonia amanhã, e a maioria do presente inevitavelmente será a minoria no futuro.