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‘El Loco’ no poder

Depois de uma campanha em que prometeu virar a Argentina do avesso, Milei conquista uma vitória acachapante contra o peronismo, mas terá de moderar seu tom se quiser governar

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Por Notas & Informações
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O anarcocapitalista Javier Milei, mais conhecido como “El Loco”, chegou lá. Menosprezado pelo establishment político da Argentina até o momento em que suas chances de se eleger pareceram reais, o exótico azarão despenteado obteve uma vitória acachapante na disputa pela presidência: foram 55,7% dos votos válidos, na maior derrota peronista em 40 anos, o que mostra que o país não estava tão polarizado assim. Mostra, isso sim, que a maioria dos argentinos simplesmente se enfastiou com o peronismo kirchnerista e, há décadas sem saber o que é prosperidade, resolveu fazer uma aposta no que lhe pareceu absolutamente novo.

A questão é que esse novo talvez não seja tão novo assim. Se no início da campanha Milei era o disruptivo da serra elétrica, no segundo turno ele moderou o tom e conquistou o apoio da direita tradicional. O ex-presidente Mauricio Macri, um autêntico representante das castas políticas que o “libertário” jurou eliminar, subiu em seu palanque. E é dessa aliança que dependerá o mínimo de governabilidade para Milei, cuja bancada puro-sangue no Congresso será ínfima perto da oposição peronista. O provável – e esperado – enquadramento de Milei não deixa de ser boa notícia. Qualquer resistência à moderação traz a perspectiva de mais um presidente argentino deixando a Casa Rosada em fuga, num helicóptero, para escapar da turba enfurecida, como aconteceu com De La Rúa em 2001.

O resultado da eleição de anteontem não é propriamente um repúdio ao populismo, pois Milei, malgrado seu ar novidadeiro, é um populista clássico. Pelo contrário: a rejeição da chapa de centro-direita no primeiro turno mostrou que os argentinos preferem mesmo o populismo, ainda que seja com sinal trocado.

Em seu discurso de vitória, Milei declarou que começava naquele momento o “fim da decadência argentina”. “Em 35 anos, voltaremos a ser potência mundial”, prometeu o novo presidente. Pode até ser, mas até lá Milei terá que resolver problemas bem mais imediatos – por exemplo, como honrará o pagamento da imensa dívida da Argentina com o FMI, contraída, aliás, por seu aliado Maurício Macri, em 2018. Recorde-se que foi o fracasso de Macri em implementar reformas na Argentina que proporcionou o desastre da volta do peronismo kirchnerista ao poder. Nada indica que o cenário será mais favorável a Milei agora.

Não à toa, Milei reiterou seu projeto de privatização de estatais, mas avisou que dependerá de reformas a serem decididas pelo Congresso. Ao referir-se aos pivôs de sua prometida revolução econômica – a dolarização total da economia, o corte incisivo da estrutura administrativa e a eliminação do Banco Central –, preferiu falar no “gradualismo” de tais mudanças. Mostrou-se, por fim, mais palatável a conversas sobre o teor de seus projetos e o arranjo de cargos na administração com o macrismo, outros segmentos da centro-direita e até com a facção peronista avessa ao kirchnerismo.

De antemão, nenhum desses setores endossa os pilares da anunciada política econômica de Milei. Tampouco aceitará, sem elevadas concessões, a redução dos subsídios sociais e a revisão das relações da Argentina com o Mercosul e com os governos do Brasil e da China, hostilizados por Milei.

No próximo dia 10 de dezembro, Milei receberá do peronista Alberto Fernández o bastão de comando da Argentina e uma herança duríssima: inflação anual estimada em 200% neste ano, reservas internacionais no chão, rombo nas contas públicas, recessão e penúria de mais de 40% dos argentinos. Seu ensaio de moderação, ainda a ser confirmado, pode arrefecer, momentaneamente, a sensação de que a Argentina caminhava para o apocalipse. Neste momento, espera-se que o personagem insano que Milei criou para ganhar a eleição fique do lado de fora da Casa Rosada, por mais que isso possa frustrar seus eleitores mais exaltados, e que o novo presidente argentino seja capaz de entender que seu governo tem escassa margem de manobra – e de erro.