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Opinião|A quem interessa a tributação ‘cross-border’?

Há suficientes razões e evidências para acreditarmos que não são os interesses nem dos consumidores nem do Estado que estão sendo priorizados

Ao contrário do que a maioria das pessoas imagina, o maior poder do Estado não é o poder de polícia, com o chamado monopólio da violência, mas sim o de tributar, impactando todas as pessoas físicas ou jurídicas. Obviamente, ninguém sério questiona a importância da tributação para financiar atividades e serviços que visem ao bem-estar social. Entretanto, há incontáveis situações em que os tributos têm outras agendas e intenções, como é o caso da presente discussão sobre a isenção, até o limite de US$ 50, do pagamento do Imposto de Importação em compras internacionais realizadas por meio de plataformas digitais, as chamadas “compras cross-border”. Para começar, o contribuinte desse imposto, segundo o Código Tributário Nacional, é o consumidor/importador, e este não tem sido suficientemente ouvido neste debate.

Há suficientes razões e evidências para acreditarmos que não são os interesses nem dos consumidores nem do Estado que estão sendo priorizados. No campo econômico, antes da entrada em vigor da Portaria que instituiu o programa Remessa Conforme, já havia isenção para as operações entre pessoas físicas. Quanto às remessas entre pessoas jurídicas estrangeiras e físicas nacionais, ocorria a incidência do imposto simplificado, com alíquota de 60%, aplicado em compras de até R$ 3 mil. Entretanto, na prática, o imposto não era aplicado em compras de até US$ 50, não apenas porque muitas vezes as remessas vinham camufladas como encomendas de pessoas físicas para pessoas físicas, mas especialmente porque o ato de fiscalizar e tributar era mais oneroso que o imposto a ser recolhido. Esse regime de isenção, seja formal ou informal, é conhecido como de minimis (da expressão latina de minimis non curat praetor, ou “o Estado não trata de insignificâncias”). Ele é aplicado por número expressivo de países (87, em estudos recentes), e é especialmente presente em nações que compõem a Organização Mundial Alfandegária, como é o caso do Brasil.

Segundo estudo internacional publicado no célebre World Customs Journal, considerando os 21 países da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Apec, na sigla em inglês), sendo a maioria deles de renda média como o Brasil, a perda de receitas tarifárias em isenções de até US$ 50 representa apenas 0,001% do PIB. Se o Brasil for muito diferente do mundo e as perdas representarem dez vezes mais que a média global, estas seriam de somente 0,01% do PIB. O valor ideal de isenção, segundo diversos autores, gira em torno de US$ 200, cenário em que o Estado pode se concentrar no que realmente faz diferença para a arrecadação.

Assim, se a arrecadação não seria representativa, a que ou a quem serviria o fim da isenção?

Parece-me que se destina à proteção de setores da produção e do varejo que há décadas não investem em inovação e que estão, digamos, preocupados com a entrada de novos modelos de negócios no mercado – modelos esses que oferecem ao consumidor aquilo que ele quer pelo preço que ele pode pagar. O consumidor é um agente econômico tão racional quanto qualquer outro e reage a interesses e estímulos. Seus interesses são o preço e a qualidade, sendo a isenção tributária um estímulo do regulador. O preço sempre reflete a eficiência dos agentes produtores e distribuidores e vai ao encontro do poder aquisitivo do demandante/consumidor. Já a qualidade abrange também o design e o time-to-market, entregando produtos necessários e desejados, no momento exato da necessidade e do desejo.

No campo jurídico, lembre-se que a proteção do consumidor é um direito fundamental, por força do artigo 5.º, inciso XXXII, da Constituição federal, cuja titularidade é difusa e coletiva, representada por associações, como a Proteste, e pelo Ministério Público. Mais importante para a presente discussão é que essa proteção também é um princípio da ordem econômica (art. 170, inciso V da Constituição federal). A Lei Complementar à Carta Magna – a saber, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor – reconhece, em seu artigo 4.º, que o consumidor é o mais vulnerável dos agentes de mercado, a quem o Estado tem a obrigação de proteger e defender, inclusive contra sua própria ação.

O fim da isenção representaria uma nova carga tributária para o consumidor, sendo essa somada aos já aprovados 17% de ICMS no âmbito do programa Remessa Conforme. No plano macroeconômico, tal medida seria um movimento na contramão da recuperação econômica do País e do combate ao superendividamento e ao contrabando. Mais do que isso, o incremento mínimo de arrecadação perderia para a diminuição da atividade econômica das classes C, D e E, que já estão sendo impactadas pelo ICMS e que, obviamente, não migrariam para o varejo tradicional.

Não há, portanto, racionalidade nessa tributação e, se o Estado deseja, por qualquer motivo, proteger setores específicos, que o faça com seus próprios recursos, pois isonomia tributária só é possível entre sujeitos tributários de mesma natureza.

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PhD DE FILOSOFIA PELA USP, DIRETOR DA PROTESTE – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CONSUMIDORES, É PROFESSOR DE ECONOMIA BRASILEIRA E INTERNACIONAL DA FIA BUSINESS SCHOOL DE SÃO PAULO

Opinião por Henrique Lian