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Opinião|O desmonte da proteção social

O Suas recuou de R$ 3,6 bilhões (2014) de recursos voltados ao cofinanciamento de ações e serviços para pouco mais de R$ 1 bi.

Atualização:

A operacionalização do Auxílio Emergencial durante a pandemia ocorreu com total desprezo ao Sistema Único de Assistência Social (Suas), especialmente em relação aos Centros de Referência de Assistência Social (Cras). Milhares de pessoas com perfil para acessar o benefício não tiveram seu direito garantido. Foi possível identificar situações dramáticas no âmbito dos municípios, muita desinformação e enormes filas nas agências da Caixa Econômica Federal por causa de dificuldades óbvias para a realidade brasileira, como falta de acesso à internet e smartphones. Ainda, a redução do valor do auxílio e sua interrupção em 2021 contribuíram para aumentar a pobreza no Brasil.

O governo federal prosseguiu com erros sistemáticos do ponto de vista da governança em políticas públicas, já que extinguiu o Bolsa Família e lançou o Auxílio Brasil, trazendo incertezas, instabilidades, meritocracia, barreiras e alterações desnecessárias em meio à pandemia, contrariando a determinação constitucional de implantação de um programa de renda básica permanente, como disposto no artigo 6.º da Constituição federal.

Com a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 1/22, ficou instituído o estado de emergência no Brasil até o fim deste ano. Assim, os valores orçamentários autorizados pela PEC não precisam estar no limite do teto de gastos, estabelecido pela Emenda Constitucional n.º 95/16, dentro da chamada Regra de Ouro ou de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Estão previstos R$ 41,25 bilhões para a expansão do Auxílio Brasil, que passou a ter valor mínimo de R$ 600 para cada família, e do auxílio-gás, além da criação de auxílios a caminhoneiros e taxistas, para compensar o aumento do preço dos combustíveis. Foi possível, então, ampliar benefícios sociais para a população, mas num contexto de desmonte do sistema de proteção social brasileiro. Quanto ao aumento dos benefícios, há um consenso da urgência diante da grave crise social.

Depois de mais de 20 anos de experiência federativa na gestão do Cadastro Único, do Suas e dos programas sociais, o governo federal promoveu mudanças em gestão que são responsáveis por novas filas, agora nos Cras de todo o Brasil. É nos municípios que as pessoas e famílias em situação de desemprego, informalidade, pobreza e insegurança alimentar buscam acesso para cadastramento e atualização de informações, com a esperança de receberem benefícios como o Auxílio Brasil e o Benefício de Prestação Continuada (BPC).

A retirada de recursos do Suas, bem como da saúde, da educação e da segurança alimentar, penaliza a população em situação de maior vulnerabilidade e desigualdade e repercute negativamente nos municípios que ofertam os serviços integrados aos benefícios. Tais serviços devem ser cofinanciados pela União e Estados, de forma regular, por meio de fundos públicos, com critérios técnicos e transparentes e em volume suficiente para atender às demandas por proteção social. O governo federal, entretanto, vem reduzindo os recursos para serviços e unidades públicas de assistência social, como os Cras.

Destaque-se que a queda foi acentuada a partir de 2019 e persistiu mesmo em anos de crise sanitária e social – no caso, 2020 e 2021. O orçamento aprovado pelo Conselho Nacional de Assistência Social para o exercício de 2021, destinado ao custeio dos serviços e das ações socioassistenciais, totalizou R$ 2.669.952.606,00, mas teve aprovação de apenas R$ 1.107.469.541,00. Para 2022, eram estimados R$ 2.721.461.766,00, mas o valor ficou em R$ 1.075.511.020,00. O Suas recuou de um patamar de mais R$ 3,6 bilhões (2014) de recursos voltados ao cofinanciamento de ações e serviços para pouco mais de R$ 1 bilhão, fragilizando a provisão da proteção social nos municípios, o que expressa uma ruptura do pacto federativo.

Quanto à execução financeira, ocorreu uma queda expressiva de repasses federais relativos aos recursos financeiros para manter o Suas em 2020 e 2021. Trata-se de uma variação no repasse de recursos ordinários, entre um exercício e outro, que ultrapassa os R$ 960 milhões.

As organizações, frentes e fóruns do Suas têm denunciado as consequências da redução de recursos orçamentários e financeiros, especialmente diante dos dados alarmantes de insegurança alimentar grave e de pobreza extrema. O desmonte e as precarizações têm relação direta com a programática ultraneoliberal, cujas consequências foram escancaradas durante a pandemia.

A reedição de políticas públicas meritocráticas e centralizadas no âmbito federal expressa um retrocesso, e é fundamental a retomada de políticas permanentes, planejadas e com impacto social, inclusive para as situações de choque e crise, integradas num amplo, universal e democrático sistema de proteção social. Esse sistema deve, inevitavelmente, ser acompanhado por reformas estruturantes que reduzam de modo efetivo as desigualdades e promovam condições de vida digna, humanamente diversa e socialmente justa.

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PROFESSORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS (PPGDH) E DO CURSO DE SERVIÇO SOCIAL DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ (PUCPR)