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Opinião|O futuro do Mercosul

É preciso adotar políticas para o bloco se adaptar à nova realidade internacional

Atualização:

O Mercosul acaba de comemorar três decênios de existência. É tempo de preservar as conquistas acumuladas: a paz, o aumento do comércio e do intercâmbio entre nossas nações. Cabe, principalmente, refletir sobre o caminho do bloco nos próximos anos.

O Mercosul conhece uma profunda crise de identidade, que se traduz na dúvida sobre o sentido da integração e reverbera na definição de metas a serem perseguidas. As difíceis relações entre Brasília e Buenos Aires, a indisposição argentina de celebrar novos acordos de livre-comércio, os desentendimentos sobre a tarifa externa comum e a reivindicação do Uruguai de liberdade para participar de acordos comerciais tornam o presente instável e o futuro incerto. Afora as questões pessoais que os separam, os presidentes Jair Bolsonaro e Alberto Fernández demonstram ter visões diferentes sobre o Mercosul, que ocupou papel secundário desde o início do atual governo brasileiro.

No plano econômico, a China tornou-se parceira fundamental para os países do Mercosul. O mercado chinês é o principal destino das exportações brasileiras, uruguaias e argentinas. A China efetua grandes investimentos em infraestrutura na Argentina, particularmente na Patagônia. Os chineses estão presentes em vários setores da economia brasileira e tudo indica que a cooperação existente vá ampliar-se em outros campos, em especial em inovação e biotecnologia.

A relevância chinesa na América Latina é um dos elementos da competição sino-americana, que se caracteriza pela interdependência e baixa polaridade. A América Latina deixa de ser uma área de interesse, exportadora de matéria-prima e alimentos, para se converter numa zona estratégica, o que configura novos espaços diplomáticos de contornos ainda indefinidos.

Os desafios do Mercosul são variados e complexos. Revigorá-lo requer animus societatis, ou seja, a vontade inequívoca dos países-membros de superarem os problemas capazes de debilitar a integração. O animus societatis pressupõe que a integração seja um imperativo que permita buscar meios de responder aos desafios comuns, para os quais a cooperação é indispensável.

Félix Peña, experiente diplomata argentino, afirma que os processos de integração têm uma dimensão existencial e outra metodológica. A primeira resume-se nas razões que motivam os Estados a agir conjuntamente. A segunda revela-se no modo como agem para realizar objetivos compartilhados. A dimensão metodológica deve alterar-se em conformidade com as mudanças globais, nacionais e regionais.

No caso do Mercosul, as mudanças necessitam de aprovação de todos os governos. Necessitam, ainda, em nível doméstico, do assentimento dos Congressos nacionais, processo que exige a formação de maioria parlamentar. Nenhum Estado, até agora, expressou o desejo de deixar o Mercosul. Logo, a questão principal diz respeito ao método para a ação conjunta (working together).

Após 30 anos, os países do Mercosul e o mundo são muito diferentes do que eram no início da década de 90 do século passado. Na qualidade de potência agrícola, não é aceitável que o Mercosul dispense a existência de uma autoridade regional para cuidar desta área e das questões sanitárias correlatas. É notório o dispêndio de recursos com a manutenção de aparatos institucionais similares nos países para executarem tarefas idênticas.

O embaixador José Botafogo Gonçalves salienta que a hidrovia abrangendo os Rios Paraguai e Paraná, de natureza internacional, seja administrada conjuntamente. Conviria, também, criar uma autoridade regional incumbida de tratar dos temas ambientais, como a redução das geleiras e da biodiversidade na Argentina, os incêndios florestais no Brasil e no Paraguai, além dos imensos danos que poderão sofrer a riquíssima variedade da fauna e da flora brasileiras. Os investimentos em infraestrutura, rodovias, ferrovias e portos, com largo uso das novas tecnologias, como drones e inteligência artificial, são igualmente imprescindíveis.

Essas são medidas fundamentais que precedem a discussão sobre a diminuição ou eliminação da tarifa externa comum. Analogamente, acordos de alcance parcial, relativos a setores industriais específicos, imprimiriam maior flexibilidade ao bloco e potencializariam o crescimento econômico. É preciso adotar políticas em vários níveis, de tal sorte que o Mercosul se adapte às circunstâncias dos membros e encare a nova realidade internacional. Nessa lógica, a reivindicação paraguaia de acesso ao mar deve ser atendida e facilitada, sem prejuízo das soberanias nacionais.

É crucial, entretanto, para consumar essas transformações, o entendimento entre o Brasil e a Argentina, que devem exercer papel de liderança. Sem esse requisito o Mercosul não terá condições de criar novas veredas de oportunidades no sertão de um mundo no qual a revolução tecnológica abreviou as mudanças sociais, políticas e econômicas.

PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)