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Opinião|Pelas regras do jogo

É preciso lidar com a cannabis com a seriedade que ela merece, com um debate profundo sobre sua regulamentação, sem comprometer a discussão com inverdades e subterfúgios

É razoável dizer que, hoje, um dos maiores gargalos regulatórios do Brasil é aquele de que trata o parágrafo único do artigo 2.º da Lei de Drogas, de 2006. O texto acertou em preservar a pesquisa científica e o uso medicinal, mesmo de substâncias proibidas, sem descartar que novas evidências viessem a alterar os paradigmas a respeito delas. De lá para cá, essa possibilidade se mostrou bem-vinda justamente no caso da cannabis, cujos potenciais terapêuticos passaram a ser cada dia mais explorados.

Mesmo previstos em lei, contudo, os usos medicinal e científico da cannabis esbarram numa questão prática: a ausência de critérios e regras claras, que deveriam ser alvo de regulamentação. Como resultado, pacientes, empresas e associações precisam recorrer ao Judiciário para consumir ou oferecer produtos de cannabis a partir de cultivos nacionais, que podem oferecer insumos com custos consideravelmente menores do que importados.

Justamente por isso é que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) instaurou o Incidente de Assunção de Competência (IAC) 16, no ano passado. Constantemente provocada a decidir para garantir o direito de pleno acesso a produtos de cannabis, a Corte suspendeu as ações que tratavam do cultivo para avaliar quem é o responsável por regulamentar o tema, e instá-lo a agir.

Independentemente do resultado desse julgamento, de cuja audiência pública participei na quinta-feira (25/4), o tema é pauta do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad). Com sua composição paritária restabelecida em 2023, o Conad pôde voltar a discutir de forma assertiva e com ampla participação da sociedade os parâmetros da política de drogas no Brasil.

Neste contexto, o conselho trabalha para entregar uma proposta robusta, com base em evidências, que possa balizar um eventual compromisso da União em regulamentar a matéria. A missão é estabelecer critérios, em consonância com boas práticas internacionais e com pesquisas sérias sobre o assunto, para definir como se dará o cultivo para fins científicos e medicinais da planta – garantindo, portanto, um direito aprovado pelo Congresso Nacional em 2006.

O regulamento é importante para ampliar e democratizar o acesso aos benefícios terapêuticos da cannabis, mas principalmente para coibir abusos e desvios. Sem prejudicar o direito pleno de quem precisa do tratamento, é justamente a regulamentação que pode ajudar a desafogar o Judiciário e identificar claramente quem transgride as regras.

Tudo isso ocorrerá nos moldes de outros produtos regulados que, no Brasil, só podem ser comprados com prescrição, em locais e quantidades específicos. Não procede tratar dos produtos medicinais à base de cannabis como se eles fossem produzidos ou vendidos indiscriminadamente. Esse mercado terá de seguir critérios claros, assim como os de cosméticos, medicamentos, agrotóxicos, tabaco, entre outros que, pelos riscos que podem oferecer à saúde humana, são devidamente controlados em sua produção, venda e consumo.

O vácuo normativo que resulta da ausência de regulamentação impede o desenvolvimento do mercado nacional, que permanece dependente de insumos e de tecnologia estrangeiros, e produz um ambiente econômico sem regras unificadas, em que cada Estado determina doenças, métodos de acesso e produtos disponíveis – isso nos casos em que existe lei prevendo a distribuição no SUS. Nos demais Estados, resta ao paciente arcar com advogados para conseguir acesso ao tratamento. Em qualquer hipótese, é a omissão estatal que produz insegurança de pacientes de empresas e mesmo da sociedade.

Estamos lidando com um grande passo para que os brasileiros deixem de depender de produtos importados para ter acesso pleno ao tratamento com cannabis. E, além disso, lidamos com uma chance para o desenvolvimento de um mercado de potencial milionário – quiçá bilionário –, que terá mais segurança jurídica para atuar a partir de parâmetros legais claros. Sem a regulamentação, é inviável que empresas se dediquem à pesquisa e ao desenvolvimento de produtos nacionais. Com ela, abre-se um universo de atuação que gera emprego e renda para o País.

É preciso lidar com a cannabis com a seriedade que ela merece, com um debate profundo sobre sua regulamentação, sem comprometer a discussão com inverdades e subterfúgios.

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VICE-PRESIDENTE DA COMISSÃO ESPECIAL DE DIREITO DA CANNABIS DA OAB NACIONAL, É RELATOR DO GRUPO DE TRABALHO DE REGULAMENTAÇÃO DA CANNABIS DO CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICAS SOBRE DROGAS (CONAD)

Opinião por Rodrigo Mesquita

Vice-presidente da Comissão Especial de Direito da Cannabis da OAB Nacional, é relator do grupo de trabalho de regulamentação da Cannabis do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad)