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Opinião|Santos Dumont e a boa ciência

O que o segundo voo do 14-Bis, há 117 anos, nos ensina sobre persistência e pesquisa

Não foi a um ritmo de download. Nem foi nada parecido com alguns cliques na primeira tentativa de busca. Na verdade, foi somente depois de duas decolagens fracassadas que Alberto Santos Dumont teve uma ideia que mudaria tudo naquele 12 de novembro de 1906: correr com o 14-Bis contra o vento. O inventor brasileiro havia conseguido, dias antes, a atenção do mundo com seu voo pioneiro, no Campo de Bagatelle, aos arredores de Paris, na França, em 23 de outubro. Esteve de volta ao mesmo local para fazer ciência ou, para resumir em um verbo, estava lá para insistir. Naturalmente, o segundo voo do 14-Bis de Dumont é uma história menos famosa do que o primeiro. Mas ela guarda lições importantes sobre aviação, persistência e boa ciência feita por brasileiros.

Há 117 anos, com o segundo voo do 14-Bis, Dumont venceu o desafio proposto pelo Aeroclube da França: voar ao menos 100 metros, decolando por meios próprios. A corrida de decolagem contra o vento permitiu ao inventor alçar voo com mais facilidade – e até hoje é a prática usual na aviação. Dumont percorreu no ar mais que o dobro exigido pelo prêmio: 220 metros. O vento que soprou contra o avião permitiu que as asas gerassem mais sustentação, que é como se chama a força que anula o peso das aeronaves e as mantém em voo. Essa lição está nas primeiras aulas de aerodinâmica em qualquer aeroclube ou escola de aviação pelo mundo. Mas são raras as vezes em que se lembra que o inventor brasileiro a pôs em prática, foi efetivamente testá-la.

Naquele início do século 20, alguns pioneiros se dedicaram a buscar soluções para o voo com aeronaves. Dumont estava na vanguarda. Os irmãos Orville e Wilbur Wright fizeram esforços importantes. Mas nenhuma técnica ou equipamento do Flyer – o avião construído por eles, nos Estados Unidos, que teria feito um voo para cinco testemunhas três anos antes de Dumont – passou para a História como recurso útil à aviação.

Para o segundo voo do seu 14-Bis, Dumont havia atualizado o aparelho. A versão de 12 de novembro da aeronave já trazia aillerons. Essas superfícies móveis, cujo nome de batismo vem do francês da época de Dumont, ficam nas asas e às vezes conseguimos enxergá-las se movendo da janela dos aviões comerciais. São ainda hoje uma solução usada em larga escala na engenharia aeronáutica. Dumont só chegou à técnica dos aillerons porque testou outras, porque insistiu. Não ficou no primeiro resultado.

Quando voou pela primeira vez, Dumont imaginou que não seria difícil comandar curvas no 14-Bis. Piloto e avião, juntos, somavam 220 kg – pouco para um aparelho “mais pesado que o ar”. Assim, ele acreditava que conseguiria mudar a direção da aeronave da mesma forma que um ciclista deita o corpo para entrar numa curva. Os irmãos Wright, fabricantes de bicicletas, pensavam o mesmo. A prática mostrou que isso não era tão simples. Os Wright apostaram num sistema que arqueava as asas do Flyer. O problema era que isso deixava a máquina instável. Já Dumont optou por testar uma técnica diferente, consolidando os aillerons na história da aviação. No entanto, isso só veio com a insistência de voltar ao Campo de Bagatelle.

Persistência é uma característica necessária à boa ciência. Conclusões tiradas às pressas, com pouca análise, na velocidade com que fazemos um download, não combinam com pesquisa qualificada. Certamente, o ritmo com que trocamos dados não precisa diminuir. Porém, testes criteriosos e conclusões avalizadas sobre essas informações vão sempre tomar algum tempo e exigir persistência, ainda que haja recursos técnicos para agilizar tudo. O Brasil tem pesquisadores persistentes.

Em cinco anos, o País quase quadruplicou a participação na lista de pesquisadores e pesquisadoras mais influentes do mundo – ranking elaborado pela editora Elsevier em conjunto com a Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Ao todo, o ranking traz 1.294 brasileiros. A Universidade de São Paulo (USP) lidera, se considerado o vínculo com instituições nacionais. Mas há também várias universidades federais citadas. A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), de onde escrevo, aparece entre as dez mais do País. Dessa instituição, são 26 entre os mais citados no ano passado. Se considerada toda a carreira dos professores e professoras, a UFSC conta com 40 nomes no ranking. Todos esses pesquisadores e pesquisadoras brasileiros, certamente, são persistentes como Santos Dumont, levando a ciência nacional ao conhecimento do mundo.

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É COORDENADOR DE DIVULGAÇÃO E JORNALISMO CIENTÍFICO DA UFSC

Opinião por Salvador Gomes