Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Falta de saneamento mata

Até 2033, muitos brasileiros ainda terão problemas de saúde em decorrência dela

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
3 min de leitura

A pandemia de covid-19 representou o maior teste de estresse para o Sistema Único de Saúde (SUS) desde seu advento, há mais de três décadas. Os recursos materiais e humanos do SUS jamais haviam sido tão pressionados como foram pelo coronavírus. Contudo, se é verdade que a pandemia levou o SUS ao limite de sua capacidade, e por vezes além, não se pode dizer que a realidade do sistema público de saúde fosse um mar de tranquilidade até o mundo desabar em março de 2020.

A bem da verdade, um ano antes de serem noticiados os primeiros casos de uma nova doença viral que só no Brasil causaria, até o momento, a morte de 600 mil pessoas, o SUS já estava sobrecarregado, entre outras razões, pelas quase 274 mil internações decorrentes das chamadas doenças de veiculação hídrica, ou seja, aquelas causadas pela má qualidade da água e pela falta de esgotamento sanitário. O número, então, representava um aumento de 12% nas internações pela mesma causa em relação ao ano anterior, a primeira vez que isso ocorreu em uma década.

Ainda não há levantamento conclusivo para o ano de 2020, mas dados preliminares apontam para uma queda do número de internações por doenças de veiculação hídrica, mas ainda em patamar muito elevado: aproximadamente, 174 mil. Como não houve melhora significativa da oferta de saneamento básico no País nesses dois anos, é lícito inferir que tampouco será expressiva a queda do número de acometidos por doenças que têm a água como veículo de transmissão, tais como diarreia, malária, dengue e leptospirose, entre outras moléstias.

Os dados constam do estudo Saneamento e doenças de veiculação hídrica: ano-base 2019, elaborado pelo Instituto Trata Brasil. Com base em indicadores do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis) e do DataSUS, o instituto calculou que a falta de saneamento básico foi causa direta do adoecimento e internação de 13,01 indivíduos por grupo de 10 mil habitantes naquele ano, o que representou, para além do incalculável custo pessoal para milhares de famílias, um custo financeiro de R$ 108 milhões ao erário.

Convém lembrar que o SUS também já foi pressionado pelas epidemias de zika, dengue e chikungunya, que também estão diretamente ligadas à falta de água corrente e ao lançamento de esgoto em locais inapropriados.

As Regiões Norte e Nordeste são as mais desassistidas do País no que concerne à infraestrutura de saneamento básico. Apenas 12% da população do Norte conta com esgoto coletado. Na região, foram 42,3 mil internações por doenças de veiculação hídrica. No Nordeste, a situação é apenas menos ruim. Só 28% dos nordestinos têm acesso à coleta de esgoto. Na região, houve cerca de 113,7 mil internações em 2019, nada menos do que 41,6% do total de hospitalizações por doenças entéricas associadas à falta de saneamento básico.

Poucas mazelas expõem com tamanha crueza a brutal desigualdade entre os brasileiros como a falta de acesso ao saneamento básico. Cerca de 35 milhões de pessoas vivem em locais sem acesso à água tratada. Praticamente metade da população – cerca de 100 milhões de habitantes – não tem acesso ao esgoto sanitário. E 51% dos sistemas de esgoto existentes não são tratados (Snis, 2019). Na prática, esse enorme contingente de brasileiros tem sido historicamente tratado como se fosse composto por cidadãos de segunda classe. É inaceitável, em pleno século 21, a falta de saneamento básico para um número tão grande de pessoas. É inaceitável que muitos brasileiros ainda morram ano após ano por diarreia, febre tifoide e outras doenças facilmente evitáveis. A renitência dessa mazela é um dos mais bem acabados retratos de um Brasil atrasado que, de uma vez por todas, deve ser superado, até por um imperativo moral.

O novo Marco Legal do Saneamento, aprovado pelo Congresso no ano passado, presta-se a eliminar essa mácula na história nacional. O texto prevê que até 2033 toda a população tenha acesso à água potável e 90% tenham acesso ao tratamento de esgoto sanitário. Até lá, boa parte da população seguirá tendo problemas de saúde causados pela falta de saneamento básico, mantendo vivo esse Brasil aferrado ao atraso.