Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Faltou combinar com a sociedade

Protestos contra PL que equipara aborto a homicídio lembram à bancada dita ‘conservadora’ que sua condição majoritária no Congresso não lhe dá poder de fazer o que bem entende

Exclusivo para assinantes
Por Notas & Informações
3 min de leitura

Raríssimas vezes em seus 200 anos de existência o Senado foi tão enxovalhado como na segunda-feira passada. Sob o busto do patrono da Câmara Alta, Ruy Barbosa, o sr. Eduardo Girão (Novo-CE), um senador da República, prestou-se ao lamentável papel de cabaretier do circo de horrores montado no plenário a pretexto de “debater” o Projeto de Lei (PL) 1904/2024, que equipara aborto a homicídio simples, proposto pelo deputado bolsonarista Sóstenes Cavalcante (PL-RJ).

Não houve debate algum. O que se viu foi a encenação macabra de um procedimento médico abortivo – com direito a uma bizarra dramatização do que seria a reação de um feto, protagonizada por uma artista de Brasília – seguida de intervenções de parlamentares e médicos favoráveis ao projeto. Como informou a Coluna do Estadão, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), teria ficado “irritado” não só com o espetáculo grotesco, mas também com a desqualificação da audiência pública requerida pelo sr. Girão, que, por óbvio, deveria ter dado igual voz aos contrários à matéria em discussão, se de debate se tratasse.

O Congresso Nacional é um espaço público laico dedicado ao debate livre, plural e respeitoso, ainda que acalorado, sobre os mais diversos temas de interesse da sociedade. Entretanto, talvez se julgando ser os “vitoriosos da História” tão somente por terem conquistado maioria congressual nas urnas, parlamentares ditos “conservadores” – que não raro se revelam apenas reacionários – parecem convencidos de que sua agenda deve se impor naturalmente, sem discussão.

Como já disse mais de uma vez o mentor intelectual de todos eles, Jair Bolsonaro, “o Estado é cristão, e a minoria que for contra, que se mude”, isto é, “as minorias têm que se curvar para as maiorias”. Por isso, segundo esse colosso da democracia brasileira, “as leis existem, no meu entender, para proteger as maiorias” e, por isso, “as minorias têm que se adequar”.

Mas a minoria teima em não se adequar, no que parece ter apoio inclusive de parte da maioria. No fim de semana passado, uma mobilização da sociedade civil, tanto nas redes sociais como nas ruas de diversas cidades do País, deteve o avanço açodado e antidemocrático do PL 1904. O tema, sabidamente sensível para grande parte dos brasileiros, nada tem de urgente, como a Câmara achou que tinha, nem tampouco prescinde de um debate honesto e responsável.

Nesse sentido, a chamada voz das ruas se fez ouvir em alto e bom som. Aqueles que até agora se julgavam ser os senhores dos destinos do País deverão repensar suas convicções e, principalmente, ajustar o olhar sobre aqueles que dizem representar no Congresso Nacional. As manifestações da sociedade, sejam contra o projeto de lei propriamente dito, sejam contra a tramitação de urgência, mostraram que, por mais forte que seja uma determinada bancada no Parlamento, é do povo, do qual emana todo o poder, a palavra final sobre a direção que o País há de tomar em todas as questões de interesse coletivo.

O tempo dirá se o PL 1904 será votado em regime de urgência na Câmara; se seguirá a tramitação regular, vale dizer, debatido nas comissões temáticas antes de ser submetido à deliberação do plenário; ou, por fim, se será mais um projeto de lei a seguir para o arquivo da Casa. Seja como for, a reação da sociedade foi fundamental para, no mínimo, relembrar que esta ainda é uma República democrática e, portanto, caso não estejam presentes as condições para o requerimento de urgência previstas nos Regimentos Internos das duas Casas Legislativas, projetos de lei devem ser discutidos com a devida prudência, ouvindo-se todos os argumentos a eles favoráveis ou contrários com respeito mútuo.

Os que dizem ser os fiéis representantes desse Brasil majoritariamente “conservador” mal disfarçam o espírito autoritário que os anima, como se seus valores e projetos para o País fossem, por si sós, superiores moral e programaticamente aos demais por força de maiorias eleitorais circunstanciais. Afinal, é isso uma democracia? Não nas palavras de Ruy, mais uma vez ele, para quem “as maiorias não são, muitas vezes, mais do que paixão e injustiça”. Que fique a lição.