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Lavagem de dinheiro

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Por Ricardo Camargo Lima
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Com a edição da nova lei de lavagem de dinheiro e o julgamento do mensalão, duas questões têm vindo à tona nas discussões dos homens de negócios. A primeira consiste em saber se o advogado está ou não inserido no rol das pessoas que têm a obrigação de comunicar operações que resultem na possível prática do crime de lavagem de dinheiro por seus clientes. A segunda, se em razão da hierarquia das corporações os administradores são automaticamente responsáveis criminais pelas condutas ilícitas de seus subordinados. Nos últimos dias, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) editou resolução dispondo ser a obrigatoriedade da comunicação às autoridades apenas dos profissionais não submetidos a regulamentação de órgão próprio regulador. A notícia veio a reforçar o que já se defendia: o advogado não pode, em nenhuma hipótese, ser obrigado a delatar os seus clientes. Tanto é assim que, em outubro último, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) decidiu entrar com ação direta de inconstitucionalidade contra a nova lei, com o intuito de obter a declaração do Supremo Tribunal Federal (STF) da não obrigatoriedade de comunicação às autoridades, no caso de o advogado saber ou suspeitar da prática do branqueamento de capitais por seus clientes. Com a resolução do Coaf, a posição da OAB ganhou força, uma vez que aquele órgão é diretamente interessado na apuração do crime de lavagem de dinheiro. A questão continua controversa. Há quem entenda não ter o advogado, antes da propositura de uma ação penal, as mesmas garantias de sigilo que possui durante o processo. Essa proteção, portanto, não atingiria a fase das consultas. No entanto, os direitos à presunção da inocência, à não autoincriminação, à ampla defesa são inerentes à pessoa humana. Mas somente se concretizam por meio do trabalho do advogado e das garantias que este tem de exercê-lo livremente. É o advogado quem está na linha de frente do combate ao poder estatal, com vista a garantir a efetivação dos direitos de seus clientes. É razoável, portanto, que as pessoas possam ao menos consultá-lo sem correr o risco de ver seus segredos comunicados às autoridades. Por outro lado, entender que os advogados estão obrigados a denunciar seus clientes é submetê-los à violação de seu sigilo profissional, intrínseco à natureza do seu ofício. A nova lei de lavagem deve ser analisada no contexto do ordenamento jurídico existente, que é de natureza democrática e abraça os direitos humanos. A lei máxima do País é a Constituição da República, garantidora do sigilo profissional do advogado. Abaixo dela vem a Convenção Americana de Direitos Humanos, que veda a autoincriminação, e, por fim, o Estatuto da Advocacia, lei federal da mesma estatura da lei de lavagem, só que com uma diferença fundamental: aquela é lei especial e, portanto, prevalece sobre esta, garantindo também o sigilo. Por causa disso, a restrição do sigilo do advogado somente para a atuação processual, e não mais para a atividade de consultoria, não se justifica, por ser inconstitucional e ilegal. A consulta, por vezes, antecede a atuação do profissional no processo. Como garantir, então, o direito de defesa e à não autoincriminação se o advogado não puder guardar o segredo de quem vem com ele se consultar? Instala-se aí um verdadeiro paradoxo. Passa a haver clara ruptura na relação de confiança entre quem procura um defensor e este, a qual se presta unicamente a fortalecer o Estado de polícia almejado por aqueles que desrespeitam os direitos fundamentais da pessoa humana, sob o argumento do combate ao terrorismo e à criminalidade organizada. Seria um contrassenso exigir dos advogados que denunciassem seus clientes antes do processo e acreditar que estes permitiriam ser defendidos por seus alcaguetes... A tentativa de enfraquecer os direitos dos cidadãos ante o Estado por meio da restrição da atividade dos advogados vem se acentuando como tendência nos últimos tempos. Entretanto, pelas razões expostas, a atividade de consultoria praticada por estes não está inserida no rol da nova lei de lavagem. Por outro lado, tratando da responsabilidade penal dos administradores de empresas, é imperioso esclarecer que o indivíduo só pode ser punido se demonstrada a sua culpabilidade. Assim o determina a Constituição ao eleger como garantia fundamental o princípio da presunção da inocência e a necessidade do devido processo legal, amparado pela ampla defesa e pelo contraditório, para a condenação de qualquer pessoa no País. Da mesma forma, o Código Penal explicita que a pessoa que comete um crime será punida na medida de sua responsabilidade sobre ele. Para haver uma condenação, portanto, é fundamental a prova da participação do indivíduo no ato ilícito. Isso faz com que a mera posição de superioridade hierárquica no seio de uma organização empresarial não seja suficiente para condenar ninguém. Claus Roxin - doutrinador que desenvolveu a teoria do domínio do fato, empregada recentemente pelo STF - afirmou em entrevista que "o mero ter que saber não basta", sendo absolutamente necessária a prova de que o superior efetivamente ordenou a conduta criminosa ao seu subordinado, sobre ela teve controle e sem a sua atuação o fato não teria ocorrido. Mas isso ainda será objeto de muita discussão judicial. Até porque, ao se valer dessa teoria, o Supremo Tribunal pode ter-se equivocado, utilizando-se da responsabilização objetiva, absolutamente proibida na esfera penal pelo ordenamento jurídico. Espera-se, por fim, que a Corte máxima do País julgue as questões suscitadas com fundamento nos direitos e garantias individuais, resguardando a integridade pessoal, patrimonial e profissional dos advogados e o direito fundamental do cidadão à ampla defesa, para preservar o Estado de Direito.

* Ricardo Camargo Lima é advogado. E-mail: ricardo@clsml.com.br.