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Lei não se negocia; cumpre-se

Em vez de simplesmente fazer o controle de constitucionalidade da lei do marco temporal, o STF prefere abrir um processo de ‘conciliação’, tarefa eminentemente política

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Por Notas & Informações
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A propósito da demarcação de terras indígenas, em toda a existência da Nova República vigorou a tese do marco temporal, fixada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009: os povos indígenas só poderiam reivindicar as terras que ocupavam (ou, no mínimo, disputavam) na data de promulgação da Constituição. Em setembro de 2023, o STF reverteu sua própria jurisprudência e derrubou a tese. Antes que a decisão fosse publicada, no entanto, o Congresso aprovou uma lei normatizando o marco temporal. Partidos e organizações civis entraram com processos questionando a sua constitucionalidade. Agora, o relator das ações, ministro Gilmar Mendes, suspendeu-as e abriu um processo de “conciliação”, convocando os autores das ações, os chefes do Executivo e do Legislativo, a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República a apresentarem “propostas”.

Não é a primeira vez que o STF lança mão deste expediente exótico. Recentemente, o governo entrou com uma ação questionando a constitucionalidade da lei que regulamentou a desestatização da Eletrobras. Segundo a lei, nenhum acionista, seja qual for sua participação acionária, pode ter mais que 10% das ações com direito a voto, conforme o modelo de corporation. Ocorre que a União, ao invés de vender suas ações, optou por manter 42% do capital, e o governo reivindica um poder de voto proporcional a essa participação. Ou seja, a União, que vendeu o seu controle para novos acionistas, agora quer anular as regras estabelecidas por ela mesma. Diante de um ato jurídico perfeito, o STF nem sequer deveria ter reconhecido a ação. Ao invés disso, porém, a Corte estabeleceu uma “negociação” entre o governo e a Eletrobras.

A “mesa de conciliação” sobre o marco temporal é ainda mais surreal, porque entre as partes de um suposto litígio constam os próprios chefes das Casas Legislativas. Segundo o ministro, é preciso “disposição política” para resolver a questão. Ora, a aprovação da lei seguiu os ritos, passou pelas comissões e pelos plenários, onde foi aprovada pelas devidas maiorias dos parlamentares. Que outra “disposição política” pode haver além dessa? Que tipo de “acordo” o ministro espera de uma negociação com representantes do Executivo e ONGs? Acaso os presidentes da Câmara e do Senado devem chegar a uma solução de compromisso e reescrever a lei de próprio punho?

Esse é só um aspecto da confusão institucional fabricada pela própria Corte. Impaciente com o contrato social consagrado na Constituição e desdobrado nas leis, o STF parece não se resignar à sua condição de intérprete e quer ser reformador, avançando sobre pautas legislativas como a descriminalização das drogas, o aborto ou a regulação das redes digitais.

O caso do marco é exemplar. A Constituição reconheceu os direitos dos indígenas sobre as terras que “tradicionalmente ocupam” (verbo no presente, não no passado nem no futuro). Para não deixar dúvida sobre a fixação temporal, o constituinte estabeleceu nas Disposições Transitórias um prazo de cinco anos para que a União concluísse as demarcações.

Agora que o STF decidiu que o marco constitucional, ora vejam, viola a Constituição, a consequência seria declarar a nova lei inconstitucional. É evidente que tal decisão causaria ainda mais tensão na relação do STF com o Congresso, mas essa perspectiva não deveria ser pretexto para que a Corte, em vez de cumprir sua função de simplesmente se pronunciar a respeito da lei, se apresentasse como mediadora de um acordo sobre essa lei. Ora, a lei só é objeto de negociação no momento em que se discute sua aprovação no Congresso; uma vez aprovada, a lei deve ser apenas cumprida.

O STF não é câmara de conciliação, muito menos para negociar direito previsto em lei. A título de, nas palavras do ministro Gilmar Mendes, evitar “grave insegurança jurídica”, o Supremo colabora para acentuá-la. Quando um Poder invade a competência de outro, pouco importa o mérito da sua decisão: há um vício de origem, e a “grave insegurança jurídica” está instalada.