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Liberalismo sob ataque

Democracias e instituições liberais podem estar abaladas pelo crescente poder de populistas autoritários, mas continuam sendo o melhor caminho para reconhecer conflitos e resolvê-los

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Por Notas & Informações
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A revista The Economist contabilizou nada menos que 76 países onde a população terá a oportunidade de votar neste ano, definindo 2024 como o maior ano eleitoral da história. Mais de 4 bilhões de pessoas vivem nesses países que irão às urnas, entre eleições presidenciais, como nos EUA, ou disputas municipais, como no Brasil. Segundo a publicação, em teoria, essa constatação deveria representar um ano triunfante para a democracia. Na prática, glória e perigo andam lado a lado, diante de um crescente questionamento em torno da democracia e dos valores liberais que ela representa.

Igualmente grande é o abismo que separa as democracias plenas daquelas que só são democráticas no nome. No cálculo da Economist, 43 países terão eleições livres, justas e transparentes. É o caso da Islândia, considerado o terceiro país mais democrático do mundo. Há também aqueles com eleições nada livres, como a Venezuela ou a Coreia do Norte (onde o comparecimento habitual às urnas chega a quase 100%, o que faz os norte-coreanos acreditarem, segundo uma velha piada local, que no dia da eleição ninguém morre ou fica doente). E há democracias com eleições falhas, como no exemplo norte-americano.

Observando tais números, o jornalista britânico Martin Wolf, principal comentarista econômico do jornal Financial Times, fez uma reflexão importante que merece ser examinada: a ideia central da democracia – segundo a qual os governos são responsáveis perante os governados – ainda é valorizada em grande parte do mundo, razão pela qual mais da metade da população mundial votará neste ano. O próprio Wolf, no entanto, trata de relativizar essa fortaleza democrática, apontando o crescente poder das autocracias e o triunfo do autoritarismo em muitos países. São exemplos o aumento do poder chinês, o sufocamento da democracia na Rússia de Vladimir Putin e até mesmo uma possível vitória de um redivivo Donald Trump, após sua tentativa de reverter na marra o resultado da última eleição presidencial.

O fato é que, como descreve Wolf, o que está ocorrendo no mundo não é exatamente uma perda de confiança nas eleições em si – não raro autoritários usam as eleições para consagrar seu poder. Estudiosos chamam o fenômeno de iliberalismo, um sistema em que as eleições ocorrem, líderes são eleitos democraticamente, e a democracia é dinamitada “por dentro”. Nessas democracias iliberais, não necessariamente se instala uma ditadura, mas se restringem direitos e liberdades básicos de cidadãos, além de instituições independentes se verem sistematicamente afrontadas. Nessa categoria estariam os EUA da era Trump, o Brasil de Jair Bolsonaro e a Hungria de Viktor Orbán, além de China, Rússia, Polônia e vários outros.

Se não há exatamente uma perda de confiança nas eleições, como lembrou Wolf, está-se diante de um ataque às instituições liberais, entre as quais os tribunais, as burocracias e a mídia independente. É o que ele definiu como uma perda de confiança no liberalismo, que parecia vitorioso após a queda da União Soviética, nos anos 1990. Há uma clara divisão política e ideológica no mundo, reforçada por líderes populistas e autoritários, à direita e à esquerda – aqueles que, sob o pretexto de pregar um mundo multipolar, apostam em cisões sectárias que tentam fazer reviver uma guerra fria inexistente, e no plano doméstico buscam simplificações ideológicas e convertem forças oposicionistas em inimigos a eliminar, como se conflitos de poder fossem um jogo de soma zero.

A democracia liberal, ao contrário, é tão preciosa porque, entre outras coisas, reconhece como legítimas até mesmo demandas que ela própria não pode atender. Reconhecer conflitos, valorizar a busca de soluções negociadas e pactuadas (e não à mercê da vontade de um “grande líder”), ancorar-se em princípios centrais baseados em direitos e liberdades individuais e coletivos, reforçar sistemas de pesos e contrapesos, eis a essência de um liberalismo que pode estar abalado, mas não inteiramente quebrado – para usar a feliz expressão de Wolf. Apesar das tentações autoritárias, sociedades assim são historicamente mais bem-sucedidas. Parece difícil, mas convém defendê-las.