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Lições da Inquisição

Nos dias de hoje, em que com frequência se dá às delações um crédito irrazoável e desproporcional, é instrutivo recordar que foi esse tipo de testemunho que ocasionou, em muitos países, uma epidemia sangrenta de perseguição

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Por Notas & Informações
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Nos anos 80, o Estado publicou um artigo do professor John Tedeschi (A Outra Face da Inquisição, Suplemento de Cultura, 16/3/1986) apontando como, ao contrário do que se consolidou no imaginário popular, já havia na Inquisição romana do século 16 garantias processuais que depois seriam incorporadas pelas legislações nacionais. O artigo indica, por exemplo, que o Santo Ofício aplicava com frequência penas alternativas ao encarceramento, como trabalhos obrigatórios em prisão domiciliar. Ou que cabia ao inquisidor prover as despesas das testemunhas de defesa, caso o réu não dispusesse dos meios necessários.

Tedeschi alerta que seu estudo se refere à instituição estabelecida na Itália em meados do século 16, não devendo ser confundida “com a Inquisição medieval que entrara em vigor no início do século 13 (e da qual a Inquisição romana era a continuação) nem com o tribunal espanhol fundado em 1478 e cuja história é completamente distinta”. Também menciona que não deseja amenizar os abusos cometidos pelos tribunais da Inquisição, nas diversas épocas. Seu objetivo é, por meio de uma análise das fontes disponíveis, traçar um panorama fidedigno do funcionamento daqueles tribunais.

À parte as controvérsias inerentes a trabalhos dessa natureza, é interessante nestes tempos de indiferença às garantias penais – não raro tratadas como “filigranas jurídicas” – revisitar direitos e proteções que a Inquisição romana concedia aos acusados. Ainda que possa surpreender, talvez a Inquisição tenha algo a ensinar sobre o devido processo legal.

“A Inquisição romana fez total uso, a partir do século 16, de uma justiça legal (em contraposição a uma justiça moral). Pude mesmo verificar, em cada caso, que Roma mandava aplicar escrupulosamente os procedimentos adequados formulados pelos manuais para uso dos inquisidores”, relata John Tedeschi. Não havia espaço para idiossincrasias ou protagonismos arbitrários.

A respeito das razões para o sigilo processual – os inquisidores faziam um solene voto de silêncio relativo a todo o processo judicial –, o artigo aponta que, entre outros aspectos, “era preciso proteger a reputação do acusado”. Havia um cuidado de fato com o princípio da presunção de inocência.

No artigo, há documentos indicando que a Inquisição romana era prudente antes de deter um suspeito. “É preciso mostrar-se muito prudente no encarceramento de suspeitos, escreve Eliseo Masini num manual consagrado, Il Sacro Arsenale, pois o simples fato de ser aprisionado por crime de heresia é notavelmente infamante para a pessoa. Será, portanto, necessário estudar cuidadosamente a natureza das provas, a qualidade das testemunhas e o estado do acusado”, transcreve o professor Tedeschi.

O artigo menciona também a carta de um funcionário da congregação romana dirigida a um inquisidor de Bolonha: “Que Vossa Reverendíssima não se apresse em proceder a uma detenção, pois a simples captura, ou mesmo a bulha que ela possa provocar, causa um grave dano”, diz o documento redigido em 1573.

Ao elencar os motivos pelos quais não houve na Itália a “epidemia sangrenta de perseguição dirigida a bruxos que assolou a Europa setentrional no final do século 16 e durante boa parte do 17”, o artigo aponta que a Inquisição romana “insistiu fortemente no fato de que o testemunho de uma pessoa suspeita de bruxaria tinha uma validade extremamente limitada enquanto fundamento de uma perseguição visando outras pessoas”.

Nos dias de hoje, em que com frequência se dá às delações um crédito irrazoável e desproporcional, é instrutivo recordar que foi esse tipo de testemunho que ocasionou, em muitos países, uma epidemia sangrenta de perseguição. Esse dado histórico mostra a relevância para todos os cidadãos, e não apenas para as partes envolvidas num determinado processo penal, do respeito ao devido processo legal. Não são filigranas jurídicas. São nesses aparentemente pequenos detalhes que se infiltram insidiosamente grandes desequilíbrios e injustiças. Não convém ignorar as lições da história.