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Meninas negras em perigo

Cerca de 40% dos casos de estupro no Brasil atingem crianças e adolescentes negras, um alerta para a soma de vulnerabilidades que tornam algumas vidas ainda mais frágeis do que outras

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Por Notas & Informações
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Quatro entre dez vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes negras, o dobro da incidência em meninas brancas, informou um estudo realizado por pesquisadores do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, com base nos dados do Sistema Nacional de Atendimento Médico, do Ministério da Saúde. O levantamento expõe outros números perturbadores que confirmam tendência apontada por outras organizações insuspeitas, como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que não só registram um volume significativo de estupros no País, como também demonstram o tamanho das desigualdades no perfil demográfico das vítimas: segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, por exemplo, quase 90% das vítimas são mulheres, cerca de 60% têm menos de 14 anos e 10% são menores de 4 anos de idade. O estudo do Insper, divulgado mais recentemente, mapeia a diferença racial das vítimas: as mulheres negras são maioria em todas as faixas etárias, numa proporção de aproximadamente 2 para 1 na comparação com as mulheres brancas.

Estatísticas com recorte racial merecem ser vistas com cautela, especialmente num Brasil de maioria autodeclarada negra (preta ou parda) e onde a maioria pobre e vulnerável se confunde com a maioria negra. Em outras palavras, negros são, em média, mais pobres do que brancos; logo, qualquer problema social que tem a ver com pobreza ou desigualdade afetará desproporcionalmente mais pessoas negras. Por exemplo, se a grande maioria de moradores de favelas e áreas de risco se declara pretos ou pardos, é natural (ainda que perverso) que enchentes atinjam em maior grau pessoas negras, sem que isso autorize teorias exóticas como a do “racismo ambiental”. Há também o risco de minimizarmos o drama enfrentado por outras vítimas – no caso, mulheres adultas, adolescentes e crianças, sejam elas pretas, pardas ou brancas, têm seus corpos violados e colocados à mercê da soma de violências que as atingem.

Os números trazidos pelos pesquisadores do Insper, no entanto, são relevantes porque há problemas nacionais que vão muito além da dimensão econômica e extravasam a mera estatística. Há mazelas que não são explicadas apenas pela desigualdade de renda: um homem negro pobre sofrerá mais assédio de seguranças de um shopping do que um branco pobre, e jovens negros correm mais riscos de receberem abordagem policial violenta do que jovens brancos. Num país tisnado pelas disparidades de renda, oportunidades desiguais e ensino público de qualidade como ativo escasso, a população negra sai, de partida, em grande desvantagem na luta por mobilidade social. Uma desvantagem que também aparece entre crianças e adolescentes negras. Como o estudo do Insper tenta mostrar, elas correm mais perigo do que as vítimas brancas.

Eis o ponto racial que faz tais estatísticas importarem: elas descortinam um elemento a mais na soma de vulnerabilidades e circunstâncias de sofrimento e trauma impostos às vítimas. É como um ciclo ascendente de problemas, uma cicatriz a sobrepor-se a outra em tal ordem que torna a vida de certos grupos mais difícil e mais frágil do que a de outros – a pobreza, a violência, a desorganização familiar, um ensino público de má qualidade, um horizonte incerto de oportunidades de trabalho e ascensão social e, além de tudo isso, o racismo. Sim, não se pode ignorar que o Brasil é um país cujas desigualdades começaram a ser fundadas na violência da escravidão – período, a propósito, em que mulheres negras eram estupradas por senhores de escravos.

O fim da escravidão não foi um ato de piedade de uma princesa, mas o resultado de um dos primeiros levantes da sociedade civil brasileira, do qual este jornal – na época chamado de A Província de S. Paulo – foi um dos defensores. A Pátria Livre, assim exaltava o texto que noticiava o fim da “vergonhosa instituição” do direito de propriedade sobre o homem. O Brasil avançou enormemente desde então, mas, diante de evidências de exclusão e de violência que atingem grupos vulneráveis, é preciso reconhecer o racismo como ferida aberta e não cicatrizada daquele período, e indignar-se com estatísticas ainda negligenciadas por boa parte da sociedade.