EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Joguete com o Supremo

A Bolsonaro não interessa mais ser cordato - precisa satisfazer sua trupe, indo novamente ao confronto

Atualização:

Em meados do ano passado, o presidente Bolsonaro atacou duramente as urnas eletrônicas, reiterando acusações vazias de fraudes em 2014 e 2018.

Na campanha para minar a confiança nas eleições, o presidente da República, em 29 de julho, fez transmissão ao vivo, pelo YouTube e Facebook, tendo ao lado coronel da reserva, lotado na Casa Civil, a explicar ter ficado comprovada a fraude na eleição de Dilma contra Aécio. Fantasiosa, contudo, era essa suspeita de fraude, conforme demonstrou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que representou em 2 de agosto ao ministro Alexandre de Moraes, relator no Supremo do Inquérito 4.781/DF, referente à fake news, para ser apurada possível conduta criminosa do presidente da República, ao divulgar inverdades sobre a insegurança do voto eletrônico. 

Apesar da medida persecutória do TSE, o presidente da República, dois dias depois, em 4 de agosto, deu entrevista à Rádio Jovem Pan, no programa Os pingos nos Is (https://youtu.be/uTst5tdNTtY), ao lado do deputado federal Felipe Barros, relator da Emenda Constitucional n.º 135, que instituía o voto impresso. 

Tramitava na Polícia Federal inquérito sigiloso, n.º 1361, relativo às eleições de 2018. O sigilo do inquérito, estampado na capa em letras vermelhas, justificava-se, pois o TSE enviara à Polícia Federal dados reservados de acesso ao seu sistema para ajudar na apuração. O deputado Felipe Barros, pretextando ser relator da Emenda do Voto Impresso, solicitou acesso aos autos à Polícia Federal, que sem justa causa lhe foi dado. 

Na entrevista, junto com o presidente da República, o deputado diz ter em mãos o inquérito sigiloso acima referido sobre o qual passa a discorrer. O presidente da República, por sua vez, tornou disponíveis os dados sigilosos do TSE nas redes sociais, criando riscos ao sistema do Tribunal.

O TSE, em face do ocorrido, no dia 9 de agosto representou ao Supremo para ser aberta investigação relativa à violação de sigilo funcional, seja por parte do delegado federal, que enviou cópia dos autos ao deputado, seja por parte do deputado e do próprio presidente da República, que, em coautoria, teriam divulgado informações sigilosas, crime previsto no art. 153, parágrafo 1.º-A, do Código Penal.

A prova do crime é incontestável por estar o mesmo registrado no YouTube e estar disponível o conteúdo sigiloso nas redes sociais. Assim, em 9 de agosto, inquérito foi instaurado contra Bolsonaro. O presidente, na sua luta contra as urnas eletrônicas, não tinha limites, alcançando o clímax em 7 de setembro, quando, em ato na Avenida Paulista, temeroso dos inquéritos contra ele instaurados, chegou a dizer que “só sairia da Presidência preso ou morto” e exaltou a desobediência à Justiça ao afirmar que não cumpriria decisão de Alexandre de Moraes.

A repercussão negativa dessa afronta à Justiça o levou a buscar conselhos de Michel Temer, que redigiu carta de compromisso, na qual Bolsonaro reiterou o respeito pelas instituições da República, intitulando Alexandre de Moraes, antes chamado de canalha, como jurista e professor.

Sob a égide desta inovadora atitude conciliadora, o presidente da República, ao receber o ofício solicitando sua oitiva no inquérito sobre violação de sigilo, peticionou afirmando que, em homenagem aos princípios da cooperação e boa-fé́ processuais, atenderia ao contido no Ofício, não interpondo recurso, apenas solicitando dilação de prazo para ser ouvido, sendo-lhe concedidos 60 dias para informar data e horário para o interrogatório.

O presidente da República não atendeu, como a correção processual exige, ao compromisso assumido, pois, em vez marcar data, recorreu da determinação de interrogatório, em comportamento contraditório com a manifestação anterior. Deslealdade processual manifesta, em arrepio à confiança depositada na palavra do presidente. Este contexto mostra um crime de responsabilidade? 

Visa o crime de responsabilidade a afirmar a respeitabilidade da Administração Pública, que, ao ter uma ordem não cumprida, é atingida em sua autoridade. O presidente poderia ter informado que manteria o silêncio em interrogatório e que nada teria a dizer, sendo desnecessária a sua realização. Mas não, pelo contrário, manifestou interesse em ser ouvido. Ao se vencerem os 60 dias, apresentou, então, recurso sabidamente intempestivo a uma decisão de meses atrás, com a qual concordara. Em suma, o Bolsonaro conciliador era evidentemente uma fraude e fez joguete com o Supremo. 

Assim, pauta-se o presidente pela intenção de afrontar a ordem judicial, pois, primeiramente, fez de conta em aceitar a decisão, ganhou prazo, para depois se arvorar contra o que antes acatara, agindo com claro abuso do direito de recorrer. 

Hoje, pelo visto, a Bolsonaro não interessa mais ser cordato. Precisa satisfazer sua trupe, indo novamente ao confronto com o Supremo, para figurar como vítima de nova “facada”, agora do Judiciário. Uma traquinagem, como bem ressaltou Editorial de terça-feira passada, que se acrescenta à grave violação de sigilo. 

DVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.