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Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

Opinião|Mídia e julgamento imparcial

Diante de reiterada divulgação sensacionalista, com potencialidade para comprometer um justo julgamento, deve-se, sim, buscar minimizar os danos daí advindos

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Em memorável página de seu Principi del Processo Penale, Francesco Carnelutti descreve a grandeza da tarefa de julgar. Lembra dispositivo do então vigente Código de Processo Penal italiano segundo o qual deve o juiz recolher-se à sala do conselho, separada da de audiência, onde se encontrará só para, sem outros rumores que não os do próprio pensamento, fazer neutra e imparcial avaliação das provas.

Este necessário silêncio, contudo, está em grande perigo em vista da força da voz das redes sociais.

Em instigante livro, a ser publicado no Brasil, Giustizia Mediatica, Vittorio Manes, catedrático de Direito Penal de Bolonha, revela os comprometimentos do ato de julgar, agora sujeito aos impactos da espetacularização. O acusado, que deveria presumir-se inocente, é tido como culpado antes do julgamento.

O fenômeno não é novo, mas hoje ganha intensidade, quando a televisão e os internautas se transformam em julgadores, substituindo juízes, e ressoa por todos os cantos das salas dos tribunais, com elevados decibéis, a sentença antecipada da grande imprensa e das redes sociais.

Como alerta Manes, a condenação midiática opera de imediato seus efeitos, prescindindo da prova e do contraditório no tribunal público das redes sociais ou da imprensa sensacionalista. Por isso, postula que o conceito de publicidade e os seus limites sejam adequados aos valores do Direito, de um lado, a liberdade de expressão e, de outro, a reputação individual e a garantia de julgamento justo.

Para que o indiciado não seja “sacrificado no altar midiático”, deve-se permitir apenas a divulgação, relativa a fato em julgamento, do estritamente necessário para fins informativos, sem afrontar a presunção de inocência. O relevante é viabilizar a mais célere neutralização das informações de culpabilidade antecipada e restaurar a repristinação da dignidade pessoal, quando sobressaia eventual absolvição.

A Convenção Europeia de Direitos Humanos estatui como garantia, no art. 6.º, o direito a julgamento imparcial. No confronto entre tal garantia e a liberdade de expressão, esta deve ser restrita, segundo o art. 10.º, inciso 2, para “assegurar a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.

Na Itália se impede a apresentação do indagado como culpado antes da verificação definitiva da responsabilidade penal. Pelos decretos leis n.º 106, de 2006, e n.º 188, de 2021, a difusão de informação sobre procedimentos penais é consentida apenas quando for necessária para a persecução penal ou atenda ao interesse público.

Na Áustria, um jornalista foi processado com base no Austrian Media Act por ter apresentado provas de corrupção de ex-ministro das Finanças, sendo, por isso, presumível ser condenado. Para a lei austríaca, é crime manifestar a probabilidade de condenação ou validar provas de modo a influir no resultado final da causa. O jornalista recorreu à Corte Europeia de Direitos Humanos, para a qual, no entanto, a lei não afrontava a liberdade de expressão, pois protege a autoridade e a imparcialidade do Judiciário.

No Direito inglês se prevê como infração, passível de pena de prisão, a prática de qualquer ato que tenda a constranger juiz ou tribunal, para garantia de processo imparcial e para que os jurados não cheguem ao julgamento com ideias preconcebidas.

Creio não caber criminalizar a manifestação de pensamento, por mais veemente que sejam, nos meios de imprensa tradicionais ou na internet, as notícias sobre o crime em julgamento. Contudo, deve-se, sim, diante da existência de reiterada divulgação sensacionalista, com potencialidade para comprometer um julgamento justo, buscar minimizar os danos daí advindos.

Para tanto, os órgãos de imprensa e as grandes plataformas devem, obrigatoriamente, ter um código de conduta orientador do tratamento relativo a fatos objeto de processo judicial, a serem comentados da forma mais objetiva, sem apresentar como única via a culpabilidade do autor da conduta.

Em complemento, deve haver dispositivo legal que garanta ao prejudicado, em vista de reiteradas notícias de sua culpabilidade, o direito de resposta. Este se destinaria unicamente a alertar os destinatários da notícia sobre a existência de campanha que compromete a realização de juízo imparcial, sem entrar na discussão das provas acerca da inocência, ou não, do suspeito ou acusado. O direito de resposta deve deixar consignada a existência de um julgamento midiático antecipado, concitando a que o juízo afaste a presunção de culpabilidade, para que, livre de preconceitos, se elabore a decisão.

Tanto os órgãos de imprensa como as plataformas devem, além de atender com urgência ao pedido de direito de resposta, estar sujeitos à determinação judicial de restringir o conteúdo das notícias ao modo mais objetivo, de forma a não influenciar a imparcialidade do juízo.

O desrespeito à ordem judicial torna passível eventual ação de responsabilidade civil. Assim, busca-se com equilíbrio compor o direito de informar e de ser informado com o interesse de julgamento imparcial.

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Opinião por Miguel Reale Júnior

Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior escreve mensalmente na seção Espaço Aberto

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